Desde 2010, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançou à sucessão uma candidata neófita nas urnas, a crônica política e o ensaísmo acadêmico evocam com recorrência a eleição presidencial de 1945. Há oito anos, Dilma Rousseff triunfou. Eurico Gaspar Dutra vencera, nos idos do século 20, em virtude sobretudo do apoio do ditador recém-deposto Getulio Vargas. Lula e Getulio guardariam em comum o condão de, nos pleitos em que não puderam concorrer, transferir com eficácia votos aos seus apadrinhados. Em 2018, a bênção do petista talvez seja mais uma vez decisiva.
Não é a opinião de Carlos Augusto Montenegro, soube-se pelo repórter Bernardo Mello Franco. O presidente do Ibope falou no fim de julho, quando supunha erroneamente que Jaques Wagner substituiria Lula na hipótese de veto do ex-presidente pelo tapetão. Em 2010, Montenegro vaticinara o fracasso da ex-ministra Dilma. Agora, duvida de novo que o endosso do antecessor dela prevaleça: “O Lula preso é diferente do Lula daquela época”. Hoje completa 144 dias o encarceramento do líder das pesquisas para o Planalto.
Há impropriedades na comparação irrestrita entre Getulio e Lula. O gaúcho foi um oligarca rural que se classificava como burguês. O pernambucano é torneiro mecânico de formação. De 1930 a 1945, o primeiro governou por 15 anos sem ganhar uma só eleição presidencial direta – perdera a de 30, mas um golpe batizado como revolução lhe entregara o poder (em 1950, o sufrágio popular o consagraria). Lula conduziu o Brasil por oito anos, em mandatos conferidos pelos cidadãos. Getulio comandou uma ditadura inclemente. Lula combateu outra ditadura.
Dos 13 presidenciáveis, três foram ministros de Lula: Marina Silva e Ciro Gomes, além do ex-prefeito de São Paulo.
Os cenários eleitorais separados por três quartos de século apresentam contrastes significativos. Não foi Getulio quem escolheu como candidato o general Dutra, que havia sido seu ministro da Guerra no Estado Novo. Fernando Haddad é opção de Lula. Simpatizante do Reich hitlerista, Dutra caminhava pela calçada direita, ao contrário de Haddad. O general era um hidrófobo anticomunista. Haddad coliga-se ao Partido Comunista do Brasil.
Os integralistas, versão nacional dos fascistas europeus da década de 1930, chancelaram Dutra em 1945. O bolsonarismo, descendente vulgar do integralismo, é inimigo do lulismo. Dos quatro postulantes de outrora, somente Dutra tinha vínculo ostensivo com Getulio. Dos 13 atuais, três foram ministros de Lula: Marina Silva e Ciro Gomes, além do ex-prefeito de São Paulo. Correligionários de Lula se queixam do que seria carisma anêmico de Haddad. Pior era o militar que viria a dar nome à rodovia Rio-São Paulo: incapaz de pronunciar s e c, ele se referia ao seu partido, o PSD, como pê-exe-dê.
Pragmatismo e astúcia
As semelhanças são eloquentes. Em 29 de outubro de 1945, os generais com quem Getulio encetara o golpe de Estado de 1937, inaugurando o Estado Novo, derrubaram-no. Menos de um mês depois, o ditador decaído não se constrangeu em chamar o voto em Dutra, que semanas antes parecera no mínimo conivente com a deposição.
Se for barrado pela Justiça, Lula promoverá a chapa Haddad-Manuela D’Ávila, em vez de boicotar a eleição. Getulio (1882-1954) e Lula são personagens históricos pragmáticos e astutos. Coincidência: o mais jovem nasceu em 1945, dois dias antes da queda do mais velho.
Oriundos de estratos sociais distintos, ambos conspiraram pela conciliação entre as classes, e não por choque e ruptura. Mesmo assim, foram identificados pelos brasileiros mais vulneráveis, que sabem onde os calos lhes doem mais, como governantes que os protegeram. Getulio criou o salário mínimo, cuja valorização foi expressiva na administração Lula, quando os bancos embolsaram lucros indecorosos. O povão era getulista e é lulista.
Oriundos de estratos sociais distintos, ambos conspiraram pela conciliação entre as classes, e não por choque e ruptura.
Ao prestigiar Dutra, Getulio debilitou o candidato Yedo Fiuza, inscrito pelo Partido Comunista. A prisão de Lula, reaproximando dele segmentos políticos que haviam se distanciado, abalou a campanha de Guilherme Boulos, do PSOL. Num caso e no outro, Lula e Getulio tiraram fôlego de projetos eleitorais de (ou mais à) esquerda.
Nem sempre Getulio e Lula se impuseram. Na eleição exclusiva para vice-governador de São Paulo, em novembro de 1947, o ex-presidente se associou ao popular senador comunista Luiz Carlos Prestes. Buscaram votos para Cirilo Júnior. A vitória foi do genro de Dutra, deputado Noveli Júnior, bancado em mais de um sentido pelo governador Adhemar de Barros. Em 2016, Lula foi à TV apelar aos cariocas por Jandira Feghali, do PC do B (ela amargou 3,3% na disputa pela prefeitura). A maioria da esquerda digitou o número do psolista Marcelo Freixo (18,3%).
Em 1945, Dutra amealhou 55,4% dos votos válidos (a eleição era realizada em turno único). Dilma, em 2010, alcançou 46,9% na primeira rodada e 56,1% na final. No Datafolha da semana passada, Lula disparava com 39% de preferência no total de entrevistados. Em simulação alternativa, sem ele, Haddad limitou-se a 4%. No entanto, 31% asseguraram que votariam com certeza em alguém indicado pelo ex-presidente; 18% talvez votassem.
‘Ele disse’
A propaganda na TV e no rádio começa depois de amanhã, 37 dias antes do primeiro turno. Acumulam-se 16 contestações a Lula no Tribunal Superior Eleitoral. O prazo para substituição de candidato termina em 17 de setembro, a 20 dias da eleição.
Lula está em cana. Em novembro de 1945, Getulio permanecia na estância Santos Reis, no município gaúcho de São Borja. O cárcere não impediu que o petista, de junho a agosto, pulasse de 10% para 20% na pesquisa espontânea, que não propõe candidatos. Sua vantagem sobre Bolsonaro no segundo turno oscilou de 27% para 30%.
Getulio teve no máximo sete dias para que propagassem país afora sua recomendação pró-Dutra. A copiosa bibliografia acerca daquela quadra histórica contém informações conflitantes sobre data exata, porém coincide no essencial: o anúncio ocorreu em cima da hora. A consulta a velhos periódicos esclarece a cronologia.
A eleição ocorreu em 2 de dezembro de 1945, um domingo. O brigadeiro Eduardo Gomes atravessara o ano como favorito. Sofrera um baque, provocado por uma – diriam hoje – fake news: ele teria menosprezado pobres e miseráveis como “marmiteiros” (contei em fevereiro a história dessa falsificação que contribuiu decisivamente para o resultado). Era tido, todavia, como provável vencedor, atestaram contemporâneos e memorialistas.
Até que, a uma semana da abertura das urnas, Getulio incentivou o voto em quem percebia como um mal menor: o oficial do Exército que combinava as condições de aliado e traidor, e não o da Aeronáutica, representante das forças mais amplas da oposição à ditadura defunta. O presidente derrubado assinou um manifesto no domingo 25 de novembro, dia registrado pelo historiador Américo Freire. É também a data manuscrita em reprodução do documento.
O manifesto foi alardeado com o título “Ele disse: votai em Dutra”. “A abstenção é um erro”, pregou. “Não se vence sem luta, nem se participa da vitória, ficando neutro”. Getulio declarou que Dutra “colocou-se dentro das ideias do programa trabalhista”. “Ele merece, portanto, os nossos sufrágios.”
‘Pânico em São Borja’
No dia 26 de novembro, o vespertino paulistano Folha da Noite publicou uma charge interpretando o apoio. Sob o título “Coisas exquisitas”, gracejo com a pronúncia peculiar de Dutra, mostrava o candidato e Getulio em dois quadros. Na imagem de outubro, Dutra expulsava do governo o presidente. Na de novembro, vestido com indumentária campestre gaudéria, Getulio cabalava votos para o general”.
Na manhã seguinte, 27, o Diário Carioca estampou a manchete em duas linhas, resumindo sua apuração da véspera e a inclinação editorial: “Getulio adere a Dutra em desespero de causa”. Apimentou: “Pânico em São Borja ante a vitória certa do brigadeiro”.
Na tarde da mesma terça-feira, o Diário da Noite revelou-se atônito, perguntando na primeira página: “Manifesto de Vargas apoiando Dutra?” O vespertino do conglomerado Diários Associados circulava no Rio. Pouco depois das 18h, ali na capital do país, iniciou no largo da Carioca um comício do ex-ministro da Guerra. O empresário Hugo Borghi leu o manifesto de Getulio. Borghi havia fabricado a mentira dos “marmiteiros”.
Na quarta 28, na edição que noticiou o ato público na Carioca, O Globo saiu com um cartum ufanista. Um turista indagava a um morador local: “Caramba! Não há soldados na Aeronáutica?!” O morador: “Há, sim”. O turista arrematava: “Mas todo mundo que eu encontro é ‘Brigadeiro’”. O otimismo já se tornara anacrônico.
A imprensa mais influente patrocinava Eduardo Gomes. Mas a poderosa cadeia de rádios de Hugo Borghi levou a todo o Brasil o “Ele disse” –de Norte a Sul foi transmitido o comício do largo da Carioca. Durante uma semana, gráficas rodaram febrilmente o manifesto. O desafio era divulgar, numa corrida contra o relógio, o apelo de Getulio por Dutra. No domingo, o general somou 3.251.507 cédulas eleitorais, contra 2.039.341 do brigadeiro.
Os partidários de Lula, reconhecendo na moita que a candidatura provavelmente será proibida, cultivam a esperança de que 2018 reproduza 1945, e Haddad herde os votos. Os antagonistas dos petistas temem a reencarnação, como Lula-Haddad, da tabelinha Getulio-Dutra .
Em sua cela de Curitiba, o ex-presidente conhece bem essa história, que ele leu no terceiro volume da biografia “Getúlio”, de autoria do jornalista e escritor Lira Neto. Lula terá mais tempo do que Getulio Vargas, em 1945, para dar o seu recado. É por isso que o dito mercado anda “nervoso”, e o dólar disparou.
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