Brasil usa rituais islâmicos para matar frangos, mas pode proibir abate religioso de matriz africana

Brasil usa rituais islâmicos para matar frangos, mas pode proibir abate religioso de matriz africana

Racismo leva abate religioso ao STF. Enquanto país exporta carne seguindo tradições islâmicas e judaicas, ação quer proibir ritual de origem africana.

Brasil usa rituais islâmicos para matar frangos, mas pode proibir abate religioso de matriz africana

É na Corte, sob a proteção de um crucifixo no plenário, que os ministros do Supremo Tribunal Federal vão decidir nesta quinta-feira se garantir a preservação dos ritos das religiões de matriz africana com uso de animais é constitucional ou não. No país em que setores do agronegócio lucram com o abate religioso seguindo os preceitos islâmicos (halal) e judaicos (kosher), uma ação do Ministério Público gaúcho contesta que assegurar liturgias das religiões afro-brasileiras é conceder “privilégio”.

Em 2003, o Rio Grande do Sul, um dos estados com mais terreiros no Brasil, criou uma lei de proteção animal que poderia tornar ilegal o abate religioso. No ano seguinte, uma outra lei foi criada para acrescentar ao código de proteção um parágrafo que cria uma excepcionalidade para os ritos e liturgias das religiões de matriz africana. O remendo foi uma garantia ao cumprimento do parágrafo V da Constituição Federal que prevê a liberdade de crença e cultos religiosos. No entanto, o MP entrou com o recurso por entender que a reforma no código viola a laicidade do estado por não citar outras religiões que também praticam o abate religioso com as bênçãos do agronegócio.

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O Brasil é o maior exportador de carne bovina e de frango do mundo e se especializou no abate seguindo os preceitos religiosos que compram essa carne. Hoje, 90% dos frigoríficos são habilitados para o abate halal e é líder na exportação – quando o abate é feito por um muçulmano que recita dizeres da religião e o animal está posicionado para meca. Em dois anos, o mercado brasileiro deve exportar 60% mais carne halal ao passar a vender para a Indonésia. Hoje, as empresas brasileiras atendem 22 países de cultura islâmica, um total de 2 milhões de toneladas de carne por ano. O país também faz abates seguindo os preceitos do judaísmo, mas em uma escala muito menor, já que a exportação acontece apenas para Israel. Ou seja, legitima o abate religioso dentro dos preceitos islâmicos e judaicos nos frigoríficos e criminaliza o abate nos terreiros.

“Tendo em vista que somos o país que mais exporta carne sacralizada das américas e que tem frigoríficos adaptados para o abate religioso, a ação é mais uma tentativa de criminalizar as práticas religiosas afro-brasileiras”, afirma o Roger Cipó, Ogan Alagbe e membro da Comissão afro-religiosa Òkàn Dimó, que está na organização da marcha contra a intolerância e o racismo religioso que acontece nesta quarta em São Paulo.

‘Os defensores de animais focam nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se fossem a um abatedouro de frango não estariam brigando com os religiosos.’

O movimento que começou no Rio Grande do Sul abriu espaço para que outras cidades também tentassem proibir o abate religioso nas religiões de matriz-africana, mesmo que nestes locais houvessem frigoríficos praticando o abate halal ou kosher – como foi o caso de Cotia, em São Paulo. O uso de animais com finalidade “mística, iniciática, esotérica ou religiosa” tornou-se passível de multa na cidade. O caso foi julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu que a lei 1.960/2016 é inconstitucional e o que prevalece é a liberdade de culto. A cidade de Valinhos, também no interior paulista, aprovou uma legislação semelhante.

“Existe uma orquestração, eu já perdi a conta das vezes que saí de São Paulo para o interior para tratar de leis que querem proibir o abate religioso na umbanda e no candomblé nos últimos dez anos”, diz o advogado Jáder Freire de Macedo. Ele representa as religiões de matriz-africana no STF ao lado de Hédio Silva Júnior e Antônio Basílio Filho.”Foram várias reuniões da Comissão de Direito e Liberdade Religiosa da OAB para explicar a vereadores que leis desse tipo rompem com a liberdade de culto que é garantida na Constituição. Eu posso listar mais de 30 leis como essas”, diz.

Para Macedo, o que está sendo julgado não é a proteção animal e sim o cerceamento à liberdade religiosa. “Os defensores de animais que acabam focalizando nas religiões afro-brasileiras o que eles entendem como maltrato. Se qualquer um deles fosse a um abatedouro de frango eles não estariam brigando com os religiosos”, completa.

De acordo com a Lei de Proteção Animal, o mau-trato é caracterizado pela morte lenta, com um sofrimento prolongado. O método utilizado no abate religioso é o da degola, catalogada pelo Ministério da Agricultura como método humanitário. Nas religiões afro-brasileiras, o abate acontece durante o ritual, para tornar o alimento sagrado. Os animais são abençoados pela força dos orixás e parte da comida é repartida entre a comunidade do terreiro para que as pessoas se alimentem da sua fé – algo semelhante ao que acontece nas religiões islâmica e judaica.

“No abate religioso, o animal não sofre maus-tratos. Nós sacralizamos o animal, e depois ele é consumido como alimento. A gente não faz sacrifício, quem sacrifica é a Friboi”, afirmou o babalorixá Ivanir de Santos, que é interlocutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro em entrevista ao Intercept em 2017.
Ações que visam proibir práticas de Umbanda e do Candomblé são um braço do racismo. O movimento tenta apagar as tradições do povo de terreiro e não está de fato preocupado com a proteção animal, uma vez que não questiona as outras formas de abate religioso. O recurso extraordinário no STF eleva a questão a nível nacional e passa a ser um marco na luta contra o racismo.

“Estamos falando em racismo religioso porque entendemos que a violência contra as religiões de matriz africana não se dá no mesmo contexto da intolerância a outras religiões”, explica Roger Cipó ao lembrar que o fato de se tratarem de religiões majoritariamente negras potencializa os ataques.

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