A estranha concorrência ‘sob medida’ que pode destinar mais de R$ 130 mi do BB para uma só empresa

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A estranha concorrência ‘sob medida’ que pode destinar mais de R$ 130 mi do BB para uma só empresa

Licitação suspeita vem sendo questionada por empresas de cobrança de dívidas que perderam a disputa para recuperar valores para o Banco do Brasil.

A estranha concorrência ‘sob medida’ que pode destinar mais de R$ 130 mi do BB para uma só empresa

Quando alguém não paga um empréstimo do Banco do Brasil, a instituição coloca um cobrador de dívidas na cola do devedor. Até junho, esse serviço de cobrança era terceirizado pelo BB, e 119 empresas diferentes corriam atrás dos valores atrasados. Em 2017, o banco recuperou R$ 3,1 bilhões e pagou R$ 320 milhões em comissões para as empresas de cobrança.

Agora, o BB resolveu entregar a caça aos devedores para a Cobra, uma estatal fundada em 1974 como empresa de tecnologia e que, desde 1990, é subsidiária do banco. Sem licitação.

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Mas a Cobra não tem braços suficientes para fazer o serviço. Vai terceirizá-lo. O contrato vale perto de R$ 400 milhões, e a seleção dos cobradores terceirizados botou uma pulga atrás da orelha de pequenos empresários que trabalham com recuperação extrajudicial de dívidas bancárias.

“O edital foi feito copiando a estrutura dela. Até se perder, ela sai ganhando”, resumiu um empresário que tentou disputar o certame.

Colocada na praça para contratar “postos de serviço para apoio às atividades de teleatendimento realizadas pela Cobra”, a licitação, que já tem vencedores, mas ainda não tem resultado oficial, irá definir as empresas responsáveis por tocar de agora em diante o trabalho de cobrar dívidas de clientes do Banco do Brasil.

No mercado, porém, é generalizada a crença de que a licitação foi formatada “sob medida” para ser vencida por uma empresa cuja história essa reportagem conta a seguir: a BS Tecnologia e Serviços Ltda.

1.310% a mais no bolso

A empresa usa a marca comercial BS Services. “O edital foi feito copiando a estrutura dela. Até se ela perder, ela sai ganhando”, resumiu um empresário que tentou disputar o certame. De fato, a BS arrematou um dos lotes, o terceiro e maior, para prestação de serviços em Salvador, que lhe irá render R$ 131 milhões – o resultado ainda não foi homologado.

Embora o edital proíba que uma empresa arremate mais de um lote ou a formação de consórcios, uma cláusula do contrato (anexado aos documentos oficiais da concorrência), deixa aberta a possibilidade de que empresas se unam para prestar o serviço. É aí que está o pulo do gato, acredita quem olhou com lupa para as regras da concorrência: a brecha permitiria que os vencedores associem-se a outras empresas, caso precisem, de acordo com essa interpretação do documento (em nota enviada à redação do The Intercept Brasil após a publicação do texto, o Banco do Brasil contestou essa interpretação). Como as regras do edital foram moldadas com semelhança impressionante à estruturada da BS Services, é muito provável que quem arrematou os dois outros lotes – no Rio de Janeiro e em Brasília, por R$ 127 milhões cada – precise subcontratar a empresa usando essa brecha legal.

A recontratação deverá se dar por um motivo simples: o edital deu ao vencedor de cada lote o pouquíssimo e nada usual prazo de cinco dias para o início da prestação de serviços após a assinatura do contrato. Nesse período, será preciso contratar 1.332 funcionários, em Brasília, e 1.421, no Rio. Sim – tudo isso em cinco dias. Uma tarefa impossível, a não ser que a empresa já tenha tal estrutura. A BS Services é a única que a possui nas três cidades, segundo fontes ouvidas por The Intercept Brasil.

A Cobra chegou a ser questionada – num dos 130 pedidos de impugnação do edital, todos negados pela estatal – sobre o assunto. Respondeu que o prazo “atende aos interesses da administração licitante, não havendo ilegalidade; ademais, nada impede que a execução do objeto contratado por meio de licitação seja iniciada imediatamente com o respectivo contrato administrativo”.

Após a publicação desta reportagem, o Banco do Brasil escreveu para The Intercept Brasil e argumentou que um documento no qual esclarece dúvidas dos concorrentes mostra que o prazo de contração poderá ser estendido – embora o edital, que é o documento mais relevante para a concorrência, não tenha sido corrigido e continue estipulando o prazo de cinco dias. “O acionamento para disponibilização inicial dos quantitativos dos postos se dará de forma progressiva”, diz o documento apresentado pelo banco.

Não é apenas o possível direcionamento que chamou a atenção das pessoas com quem a reportagem conversou, ao longo das últimas semanas, a respeito do edital. O valor que a Cobra se dispõe a pagar também causa espanto. Num contrato de R$ 178 milhões que mantém desde 2013 com a BS Services, a subsidiária do Banco do Brasil paga, além dos custos com salários, benefícios e encargos sociais, uma remuneração de R$ 95 por mês por empregado contratado, chamada no contrato de Taxa de Administração.

No edital que está em andamento, a Taxa de Administração sumiu. Em vez disso, a Cobra simplesmente aumentou de 88% para 106% o valor que irá pagar à empresa para cada um dos três níveis hierárquicos de teleatendimento contratados. Comparamos o valor com a soma de salários, encargos e benefícios pagos pela BS Services atualmente em Salvador, disponíveis no acordo coletivo de trabalho firmado pela empresa com seus empregados. A diferença entre uma e outra coisa significa uma margem de lucro que varia entre R$ 620 e R$ 1.340 por empregado por mês. Em relação à atual Taxa de Administração de R$ 95, é um aumento de lucro que pode chegar a inacreditáveis 1.310% em favor da BS Services. O lote 3, vencido pela BS, demandará o trabalho – e a remuneração – de 1.909 funcionários.

A boneca russa: entre bairros pobres e apartamentos de luxo

Personagem principal desta história, a BS Services parece não ser apenas uma empresa, mas a face visível de várias outras, com sócios espalhados em bairros pobres da Grande São Paulo – os mais visíveis – e em apartamentos de luxo em Salvador – os nem tanto. Analisar a papelada da empresa dá a impressão de que se está lidando com uma matriosca, as bonecas russas que se escondem umas dentro das outras.

A BS Services foi aberta há 18 anos num sobrado num bairro de classe média em Cotia, cidade da Grande São Paulo, onde ainda hoje é possível comprar uma casa com mais de 100 metros quadrados com menos de R$ 500 mil. Em seus primeiros tempos, dedicava-se à manutenção de máquinas de escrever, fotocópias, serviços de microfilmagem e hospedagem de internet – e à locação de mão-de-obra temporária.

Em 2010, ela já mudara seu escritório para um imponente edifício com fachada de vidro e alumínio escovado no luxuoso Tamboré, um condomínio residencial e comercial localizado em Barueri, também na grande São Paulo. Mais dois anos e a BS Services já tinha filiais no Rio de Janeiro e em Salvador. Foi quando o dinheiro público começou a jorrar.

Em fins daquele ano, a empresa começou a prestar serviços para diversos projetos do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações – que, sob Michel Temer, foi colocado no mesmo guarda-chuva da área de Comunicações. Entre 2012 e 2017, contratos com a pasta renderam R$ 12,7 milhões à empresa. Em 2015, por fim, a BS Services aportava em Brasília.

Várias empresas, todas no mesmo condomínio

Um documento que faz parte de um processo trabalhista e que nada tem a ver com o Banco do Brasil crava a relação estreita entre várias empresas importantes nesta trama. Trata-se de um acordo extrajudicial firmado por um analista de sistemas com seis pessoas jurídicas, simultaneamente.No termo, as empresas concordam em pagar, juntas, uma indenização ao trabalhador. Cinco delas – BS Services, NCK Gestão da Informação, KM Precision, Central de Serviços Online e AFGP – são personagens desta história.

Dois nomes são constantes no quadro de sócios ao longo da trajetória da BS Services: Sebastião Rodrigues de Souza e Rosa Maria Belanda. Souza é sócio de mais um punhado de empresas, aí incluídas uma igreja evangélica em Cotia e uma representação comercial chamada Rubi. Uma delas é a BS Contabilidade. Não à toa: Souza é contador e responsável ele mesmo pelas contas da BS Services, de que é também sócio-administrador – algo pouco usual num negócio que fatura milhões e tem milhares de funcionários.

Rosa Maria Belanda informa, em seu Facebook, que é diretora da BS Services e sócia de uma holding chamada MKS Participações (também junto com Souza) e acionista da NCK Gestão da Informação S/A – guarde esse nome.

Apesar disso, ela informa à Junta Comercial de São Paulo que ainda vive no mesmo endereço dos tempos em que abriu a primeira empresa: um bairro de classe média baixa em Osasco, na grande São Paulo. Não é caso isolado: Souza, apesar de aparecer como proprietário de um punhado de empresas, segue morando no mesmo bairro simples em Cotia onde já estava 20 anos atrás. “Dá até a impressão de que eles não são os verdadeiros donos do negócio”, relatou uma fonte.

Souza e Belanda não foram os únicos sócios da BS Services ao longo da história da empresa. Em 2006, a NCK, de que falamos acima, comprou uma participação no negócio. Constituída pouco tempo antes, em Cotia, a companhia teve como primeiras sócias a própria Belanda e Maria Barreto de Araújo Manso Cabral – um nome que leva nossa história da periferia da grande São Paulo a Salvador.

Transformada em sociedade anônima, a NCK atualmente tem sede no mesmo edifício da BS Services, em Tamboré. Um de seus acionistas é Jorge Amaro Coelho Júnior, que, em seu perfil no LinkedIn, apresenta-se como proprietário da BS Services desde 2009.

Outra pessoa da família Manso Cabral, José Carlos Manso Cabral Filho – herdeiro de um empreiteiro de algum renome na Bahia – é dono de uma empresa de auditoria, chamada KM Precision, cuja sede informada à Receita Federal também está localizada no mesmo edifício da BS Services, em Tamboré. Até o e-mail que consta da inscrição da KM Precision na Receita Federal comprova sua ligação com a BS: é o de Sebastião Rodrigues de Souza. Manso Cabral é proprietário de outra empresa de tecnologia, a Central de Serviços Online, sediada em Salvador – no mesmo edifício em que, em junho, quatro dias antes da licitação da Cobra, a NCK abriu uma filial.

Outro sócio da KM Precision é Euclides Paiva Alves Júnior, que também é dono de outra empresa, batizada com o pomposo nome de Associação para o Fomento e Gestão de Projetos Público-Privados, a AFGP. Alves Júnior já andou na mira do Ministério Público baiano, por conta de um convênio irregular que firmou com o Detran local. Em mais uma coincidência, a sede da AFGP está no mesmo prédio, em Salvador, da filial local da BS Services.

“Manda uma carta”

“BS, boa tarde”, diz a moça ao atender o telefonema da reportagem à sede paulista – em tese, a matriz – da empresa num início de tarde de sexta-feira. O primeiro pedido é por Rosa Maria Belanda; a resposta é que ela não pode atender. Pergunta-se, então, por Sebastião Rodrigues de Souza. “Um momento”, diz a moça, antes de parecer virar-se para o lado e falar, sem erguer o volume da voz: “Ô, Sebá”. Dá a impressão de que o local não é mais que uma pequena sala.

“De licitação quem cuida é minha sócia”, dá de ombros Sebastião, quando perguntado sobre a suspeita de que o certame tenha sido dirigido em favor da BS Services. Ele não aparenta surpresa com a pergunta, tampouco indignação, quando confrontado com a suspeita de um crime.

Um documento que faz parte de um processo trabalhista e que nada tem a ver com o Banco do Brasil crava a relação estreita entre várias empresas importantes nesta trama.

Ante a minha insistência, ele sugeriu que as perguntas fossem enviadas por escrito, mas recusou-se a fornecer um endereço de e-mail. “Manda uma carta. Você já sabe o endereço”, ironizou, antes de deixar claro: “Não tenho que explicar nada para você. Não tenho nada a dizer, moço”. The Intercept Brasil enviou os questionamentos para o e-mail do próprio Souza, que está publicado no registro da empresa na Receita Federal.

O único momento da conversa em que Souza pareceu irritar-se foi logo no início, quando ouviu uma pergunta sobre o rápido crescimento da BS Services que mencionava sua origem na periferia de Cotia. “Você sabe onde está a empresa, por acaso? Aqui é periferia? Tem ideia de há quanto estamos em Tamboré?”, reagiu.

A expectativa de ACM Neto

A abertura da nova central de teleatendimento do Banco do Brasil em Salvador foi aguardada com ansiedade pelo prefeito da capital, Antônio Carlos Magalhães Neto, do DEM. Em janeiro, o jornal da família dele – a mais tradicional da política baiana – registrava que o Banco do Brasil iria gerar 3,5 mil empregos com a chegada da sua estrutura de telecobrança à cidade, como parte de um projeto da prefeitura chamado Salvador 360.

“ACM Neto anunciou 5 mil postos de trabalho no call center do BB já em 2017. Como ele já sabia que essas vagas seriam abertas?”, questionou um dos empresários que vêm tentando cassar a licitação aberta pela Cobra – até agora, sem sucesso – e que falou ao The Intercept Brasil sob a condição de anonimato por temer retaliações do banco.

A suspeita de que algo possa estar errado na licitação e no emaranhado de empresas relacionadas à BS Services chamou a atenção de um deputado federal, Felipe Carreras, do PSB pernambucano. Nessa semana, ele enviou ofício ao presidente do BB, Paulo Caffarelli, pedindo que a concorrência fosse suspensa.

Noutra frente, a Associação Nacional das Empresas de Recuperação de Crédito (Aserc) pediu ao Tribunal de Contas da União para que analise tanto a entrega da carteira de cobrança extrajudicial do BB à Cobra quanto a licitação em andamento, que suspeita ser direcionada à BS Services. O caso está nas mãos do ministro José Múcio Monteiro.

O TCU, aliás, já multou administradores do banco por conta de aditivos ao contrato firmado pela Cobra em 2013 com a BS Services. Ao prolongar o acordo, a Cobra reajustou o valor em 15,5%, alegando ser este o “incremento havido no salário-mínimo da categoria de operador [de telemarketing] para o período, o que demonstraria a razoabilidade dos valores contratados”.

O relator do caso, ministro Walton Alencar Rodrigues, não engoliu a justificativa. “A simples alegação relativa ao percentual de aumento de salário de operador não supre a irregularidade, dada a diversidade de cargos previstos no contrato, como atendentes, auxiliares, técnicos e analistas, cujos valores de remuneração foram anexados ao termo aditivo sem documentação que justificasse a alteração”, anotou. O TCU também investiga, desde 2015, se é regular a contratação da Cobra pelo Banco do Brasil sem licitação.

Procurado pela reportagem, o Banco do Brasil informou que a Cobra “desde 1998, presta serviços de call center [e] a partir de fevereiro de 2014, passou a atuar também no contato com clientes responsáveis por operações em atraso. Por ser uma subsidiária integral do Banco do Brasil, a contratação da empresa pode ser realizada com dispensa de licitação, conforme previsto na legislação.”

Sobre a licitação, o banco argumentou que “o novo processo licitatório para suportar os serviços prestados ainda não foi concluído.”

Correção, 17 de julho, 18h:

Uma versão anterior desse texto afirmava que, num período de cinco dias, as empresas vencedoras da concorrência teriam de arrumar espaço para que os funcionários possam trabalhar. A informação estava errada: esse espaço será fornecido pela Cobra.

Esclarecimentos, 18 de julho, 16h:

Dois trechos da reportagem foram modificados com objetivo de melhorar a compreensão do texto. O primeiro dizia que o edital permite a formação de consórcios de empresas. O texto foi editado para deixar mais claro que essa possibilidade é uma interpretação feita por fontes ouvidas pela reportagem baseada em uma cláusula do contrato padrão anexado ao edital. O Banco do Brasil questionou essa interpretação em contato feito com a redação após a publicação da reportagem.

No segundo trecho, o texto afirmava que a BS Services poderia ter um aumento na margem de lucro “que chega a inacreditáveis 1.310%” em relação ao atual contrato com a Cobra em Salvador. O Banco do Brasil questionou a informação após a publicação da matéria, alegando que não há aumento de 1.310% na “remuneração” da empresa. O cálculo está correto, mas o trecho foi reescrito para deixar claro que se referia ao ganho potencial na margem de lucro.

Atualização, 20 de julho, 18h:

O texto diz que “o edital deu ao vencedor de cada lote o pouquíssimo e nada usual prazo de cinco dias para o início da prestação de serviços após a assinatura do contrato”. A informação está correta, mas o Banco do Brasil entrou em contato com a redação para informar que um documento da instituição que traz esclarecimentos aos concorrentes informa que o prazo de cinco dias poderá ser prorrogado. A informação foi acrescentada ao texto.

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