A juventude de El Salvador entre a violência das gangues e o abuso policial

Trump anunciou o fim do programa de proteção a imigrantes de El Salvador. Fotos de Natalie Keyssar mostram por que os salvadorenhos temem regressar ao país.


Na semana passada, o governo Trump anunciou que encerrará em breve um programa que protege vários imigrantes de El Salvador da deportação. Membros do governo alegam que o principal motivo para conceder o Status de Proteção Temporária (TPS) a essa população (os dois devastadores terremotos de 2001) já não é pertinente.

Ao usar essa lógica, evitaram tocar na principal razão pela qual os salvadorenhos temem regressar: a violência de gangues, que tornou o país um dos lugares mais perigosos do mundo. A maior parte dos salvadorenhos protegidos pelo TPS está nos EUA há mais de vinte anos, e o país para onde Trump quer mandá-los de volta tem um perfil muito diferente e perigoso.

No primeiro semestre do ano passado, a fotógrafa Natalie Keyssar fotografou a juventude dos bairros controlados por gangues em San Salvador, capital de El Salvador. Esses jovens estão encurralados entre as duas famigeradas gangues MS-13 e Barrio 18, que ganharam poder depois que seus líderes foram deportados de Los Angeles e regressaram ao país nos anos 1990, e a repressão indiscriminada das forças de segurança, com apoio dos EUA, que está piorando a situação de violência.

April 2017, El Salvador, San Salvador. Birds fly through a housing project in gang controlled Zacamil. (Natalie Keyssar)

Revoada de pássaros em meio a um projeto habitacional no bairro de Zacamil, região controlada por gangues em San Salvador, capital de El Salvador. Na foto do título está Wendy Morales, ativista social que ensina línguas indígenas e arte. Ela passou um mês presa, junto com membros de gangues, porque um celular usado que ganhou tinha relação com um caso de extorsão por gangues. Depois que organizações internacionais intervieram em seu favor para libertá-la, ela passou a se dedicar à luta contra o encarceramento indevido e o abuso policial. Todas as fotos desta reportagem foram tiradas em abril de 2017.

April 2017, El Salvador, San Salvador. 13 year old Kenya Fabiola Gonzales Trinidad holds her pet parrots on her arm at her home outside of San Salvador. She has just moved to the new community of new cinder block 3 room houses built with church donations, because her old neighborhood where she lived with her brother and grandfather was too dangerous due to gang activity. (Natalie Keyssar)

Kenya, de 13 anos, com seus papagaios de estimação empoleirados sobre o braço em sua casa, nos arredores de San Salvador. Ela contou que acabara de se mudar para a comunidade de casas de blocos de concreto com três cômodos com a ajuda de doações da igreja porque seu antigo bairro era perigoso demais.

Crianças e adolescentes em El Salvador enfrentam ameaças bem documentadas nas mãos das gangues, de extorsão a recrutamento forçado como membros ou “namoradas” de membros. Presenciar alguém das gangues cometendo um assassinato, ou simplesmente estar na parte errada da cidade ou na linha errada de ônibus, pode equivaler a uma sentença de morte.

violência policial também não para de aumentar. Pela mera suspeita de que sejam membros de gangues, jovens pobres são parados, questionados, detidos, e, em alguns casos, mortos. Extorsões e apreensão de telefones celulares são comuns.  Os ativistas dizem que a polícia frequentemente planta provas e se baseia em indícios frágeis de filiação a gangues. Além da violência física, há um estigma social e econômico disseminado em relação aos moradores das áreas onde a presença das gangues é forte.

April 2017, El Salvador, San Salvador. Flowers grow over a murder scene in Colonia Londres.(Natalie Keyssar)
April 1, 2017. San Salvador, El Salvador. School girls pose for a photo on a soccer field on Saturday morning after a school program.

É impossível para os jovens dos bairros pobres não interagir de alguma forma com as gangues, conta Tatiana Alemán, jornalista que se tornou ativista depois que seu irmão mais novo foi detido, falsamente acusado de pertencer a uma gangue. “Conhecemos essas pessoas desde crianças”, disse ela. “Mas se a polícia vir você com um deles, pode esquecer, você vai ser acusado de colaborar.”

April 2017, El Salvador, San Salvador. A Salvadoran police officer's weapon bears the name of his country. (Natalie Keyssar)

A arma de um policial salvadorenho traz o nome do país.

Muitos jovens salvadorenhos dizem que têm tanto medo da polícia quanto das gangues. Meibi, uma moça do bairro de Zacamil, um dos redutos da Barrio 18 em San Salvador, conta que é constantemente assediada pela polícia. Ela não pode sair do bairro porque o endereço em sua carteira de identidade faz com que as pessoas presumam que ela faz parte da gangue. Em abril, um jovem rapper de Zacamil, cujo nome artístico é Demo, foi preso durante uma operação da polícia, logo após a morte de um agente, dias depois de Keyssar fotografá-lo para esta reportagem. Demo foi liberado três meses depois, mas ainda teme uma possível retaliação, porque os policiais acreditam que ele seja culpado. (Por questões de segurança, The Intercept divulgará os sobrenomes dos jovens salvadorenhos.)

Demo contou que já havia testemunhado o assassinato de dois amigos — um pela polícia, o outro pelas gangues. “Já perdi a conta de quantas pessoas vi serem mortas na minha frente”, declarou ele em abril, antes de ser preso. “Dizem que violência gera violência, mas estou tentando não ser assim. As duas gangues dividem o país todo. Aqui em Zacamil, às vezes, duas casas que dividem parede formam a fronteira entre uma gangue e outra. Só quero que sejamos vistos como pessoas.”

April 2017, El Salvador, San Salvador. Children look out the window at the scene of what police say was a gang assassination of a young women waiting for her daughter to get out of school.(Natalie Keyssar)

Crianças observam o local do assassinato de uma moça, morta por uma das gangues enquanto esperava sua filha sair da escola em San Salvador.

Em algumas áreas, o clima de tensão chega a ser sufocante. Ao falar das gangues, as vozes subitamente baixam de tom e passam a se referir, de forma velada, a “números” (Barrio 18) e “letras” (MS-13). Para entrar em um bairro dominado por uma gangue, quem é de fora precisa de um acompanhante e deve abrir os vidros do carro para se identificar. Vigias seguem os visitantes, e a tensão toma conta de todos.

April 6 2017, El Salvador, San Salvador. At an event put on by the Mayor in a gang controlled barrio, local skaters show off their skills. Skating and other cultural activities attempt to create a cultural space for youth that is not gang related. (Natalie Keyssar)

Em evento organizado pelo prefeito de San Salvador num bairro controlado por uma gangue, skatistas locais mostram suas habilidades. O skate e outras atividades culturais tentam criar um espaço para os jovens que não estejam ligado às gangues.

Daniela, de doze anos, contou que só pode sair de casa para ir à escola ou jogar futebol. Os pais acham qualquer coisa além disso muito perigosa. Enquanto as crianças faziam biscoitos e ensaiavam uma coreografia num centro comunitário do bairro de San Roque, em outubro, uma das mães confessou que tinha entrado para o voluntariado só para poder sair de casa. “Não há lugar seguro, eu estava sempre sozinha, minha filha sempre enfiada dentro de casa.” No começo da semana, uma voluntária havia sido morta no caminho para buscar seu filho.

April 2017, El Salvador, San Salvador. A baby pool in the heat of the day in Tonacatapeque San Salvador. (Natalie Keyssar)
April 2017, El Salvador, San Salvador. Natalie Martinez, 15, poses for a portrait near the soccer field she used to play on in her neighborhood of San Salvador. She had to quit soccer because she works nights and weekends now whenever she's not in school at a local mechanic shop. Several of her brothers are gang members and she says they live in constant fear that the family will be attacked by police. She says she fears the police more than any other gang. "I had a friend who was really pretty once. Karin. She was 15. A gangster wanted her but she rejected him. He took her one day. After that they found her dead. "She says she is afraid to leave her home a lot of the time. (Natalie Keyssar)

Tanta tensão social contribuiu para o surgimento de uma onda de jovens tentando sair da América Central e chegar à fronteira sul dos EUA para pedir asilo ou atravessar ilegalmente. Essas crianças não estão aptas a solicitar a proteção do TPS, o programa que Trump acabou de cancelar. Muitas delas, porém, têm parentes nos Estados Unidos que foram aceitos por esse ou algum outro programa de imigração. E dependem deles, inclusive financeiramente. Cada decis§o de Trump que restringe as alternativas para os refugiados e outros tipos de migrantes provoca um efeito-cascata.

April 14, 2017. Zacamil, San Salvador, El Salvador. Barrio 18 graffiti in Zacamil. (Natalie Keyssar)

Pichação da gangue Barrio 18 em Zacamil.

Em um evento promovido por uma organização de assistência jurídica em Los Angeles, na segunda-feira (8) à noite, logo depois do anúncio sobre o TPS, Stephanie, uma cidadã norte-americana de 21 anos, estava com seu pai, Mario, um beneficiário do TPS que está nos Estados Unidos desde 1993. (A dupla pediu para ser identificada apenas pelos primeiros nomes.) Os primos de Stephanie em El Salvador contam histórias sobre extorsões e espancamentos. “Eles não saem de casa porque sentem medo”, disse ela.

“Imagine se alguém beneficiado pelo TPS tem filhos aqui, e precisa levá-los de volta para El Salvador”, continuou. “Ninguém está preparado para uma mudança tão drástica. Eles ficariam deprimidos, amedrontados.”

April 2017, El Salvador, San Salvador. "Demon" was unsure about showing his whole face or not. He wanted to but he was nervous. A young rapper who teaches youth in his neighborhood with the approval of Barrio 18 which controls it, many members of his family are gang involved, but he wants to do music. A few days after this image was taken he was arrested and imprisoned accused of killing a police officer. 3 months later he has been acquitted but still fears the police will seek retribution because they believe he is guilty. He has witnessed 2 friends killed in front of him. One by enemy gangs and one by the police. (Natalie Keyssar)

Um jovem rapper que usa o nome de Demo decide mostrar apenas parte do seu rosto. Ele dá aula para outros jovens e disse que, embora esteja cercado pela ação das gangues, quer seguir carreira na música.

Ficar em El Salvador significa se adaptar e resistir. Alemán e sua mãe criaram uma página no Facebook para reunir as vítimas de violência policial e de prisões ilegais, chamada “Los Siempre Sospechosos de Todo” — “Os Sempre Suspeitos de Tudo”. O nome do grupo vem de um verso do poeta mais famoso de El Salvador, Roque Dalton, que denuncia a criminalização dos salvadorenhos pobres. Los Siempre Sospechosos faz performances pela cidade e prega cartazes com os rostos das vítimas de violência policial.

“Queremos inspirar as pessoas para gerar uma cultura em que essas coisas sejam denunciadas”, explica Alemán.

April 2017, El Salvador, San Salvador. The Mayor of San Salvador's security guard in Colonia Iberia. (Natalie Keyssar)

Segurança do prefeito de San Salvador em Colonia Iberia.

 

April 2017, El Salvador, San Salvador. Daniela Miranda, 12, only leaves the house to play soccer or go to school, otherwise her parents say its too dangerous. (Natalie Keyssar)

Daniela, 12 anos, diz que só sai de casa para jogar futebol ou ir à escola.

 

April 2017, El Salvador, San Salvador. An effigy of Judas hangs in the notoriously gang controlled neighborhood of Los Mejicanos, in Barrio 18 territory, the night before Easter Sunday. (Natalie Keyssar)

Um boneco de Judas enforcado no Sábado de Aleluia no bairro de Mejicanos, controlado pela gangue Barrio 18.

Outros organizam espaços para que as crianças e os adolescentes possam fugir da permanente troca de tiros entre gangues e policiais. Sentado na beirada de uma rampa de skate em um parque, em abril, Alejandro falou da origem do seu coletivo informal, que leva projetos artísticos a Zacamil. Ele passa os dias dando aulas de pintura para alunos de ensino fundamental (alguns deles filhos de membros de gangue), andando de skate com adolescentes enquanto discute a brutalidade da polícia ou cultivando relacionamentos com organizações que possam ajudar seus colaboradores quando eles se envolvem em encrencas. Crescer em áreas controladas por gangues o ajudou a entender as necessidades de uma comunidade que é pintada como “violenta e irrecuperável”.

“A própria violência contra a qual estamos lutando é o que fez minha mente evoluir até hoje”, ele explicou. “Temos que resgatar o lado humano das pessoas na rua, temos que entender que a rua dá a eles o sentimento de família que não têm em casa.”

April 2017, El Salvador, San Salvador. A woman who police say was assassinated by gang members while waiting to for her child to get out of school. (Natalie Keyssar)

Segundo policiais, mulher que aparece na foto foi assassinada por membros de gangue enquanto esperava sua filha sair da escola em San Salvador.

Foto: Natalie Keyssar

Essa reportagem foi financiada pela Fundação Internacional das Mulheres na Mídia (IWMF). Natalie Keyssar e Cora Currier foram beneficiárias da bolsa de jornalismo Adelante da IWMF, em El Salvador, em abril e outubro de 2017, respectivamente.

Tradução: Deborah Leão.

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