A reforma da Previdência nasceu como um monstrengo devorador de velhinhos, mas, ao que tudo indica, vai se tornar um ajuste sutil, se tanto, no setor de seguridade social. O problema, segundo especialistas ouvidos por The Intercept Brasil, é que há grandes chances de que, quando as mudanças começarem a valer plenamente, elas tenham um impacto pouco significante.
Antes de irmos em frente, é preciso dizer que não há grandes dúvidas quanto à necessidade de uma reforma da Previdência. A população brasileira está envelhecendo extremamente rápido. Hoje, para cada brasileiro com mais de 65 anos, existem nove em idade produtiva. Já em 2060, segundo especialistas, teremos duas pessoas na labuta para cada aposentado.
Além disso, pouca gente se lembra, mas o sistema público de aposentadorias tem, ou deveria ter, uma função social, de distribuição de renda e de combate à desigualdade. A ideia, basicamente, é fazer com que aqueles ainda em condição de trabalhar ajudem a sustentar os idosos.
Só que esse sistema, do jeito que é hoje, não funciona bem, principalmente por causa da aposentadoria por tempo de contribuição. Hoje, os brasileiros em geral podem receber o benefício por dois caminhos. No primeiro, para se aposentar por idade, precisam ter no mínimo 60 anos, no caso das mulheres, ou 65 anos, no caso dos homens. Também precisam ter contribuído por pelo menos 15 anos. O segundo caminho é por tempo de contribuição. Basta ter contribuído por 30 anos, para mulheres, e 35 anos para homens, para garantir a aposentadoria.
Sistema desigual
Isso permite que um sujeito que começa a trabalhar aos 20 anos se aposente aos 55. Esse modelo, segundo o coordenador de Previdência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Rogério Nagamine, favorece aqueles que têm condições de ficar três décadas e meia sem perder o emprego, sem ter de recorrer a bicos e sem manter outra função informal para completar a renda no fim do mês.
Esses, que conseguem entrar cedo no mercado de trabalho, com carteira assinada, e lá permanecer por estáveis 35 anos geralmente pertencem às classes mais abastadas. Já os mais pobres, segundo estudos de Nagamine, tendem a se aposentar por idade. “Isso não me parece nem justo, nem sustentável”, diz.
O economista e sociólogo especialista no sistema previdenciário Marcelo Medeiros vai na mesma linha:
“De todas as medidas da reforma, a mais importante é o estabelecimento de idade mínima para todos, sem exceção. Basta isso para resolver o problema mais importante. Os demais podem ser enfrentados quando governos com maior reconhecimento político e um Congresso com mais legitimidade estejam no poder”.
É uma questão de criar um sistema mais igualitário e, ao mesmo tempo, eficiente. “A maior parte do dinheiro da previdência é gasta com as aposentadorias mais altas. O bom senso diz que a economia deve ser feita lá onde está a maior parte do dinheiro“, complementa.
Medeiros fez essas considerações antes da divulgação das últimas propostas do relator da reforma da Previdência na Câmara, Arthur Maia (PPS-BA), que vão mais ou menos nessa direção: a ideia agora é ter uma idade mínima geral (65 anos para homens, 62 anos para mulheres) com um mínimo de 15 anos de contribuição. Ou seja, elimina-se a possibilidade de se aposentar apenas por tempo de contribuição, o que acaba com as aposentadorias precoces.
Para os mais pobres, que, na prática, já se aposentam por idade, haveria poucas mudanças, além do aumento de dois anos para a idade mínima das mulheres (não seria uma reforma do governo Temer sem alguma maldadezinha).
Blade Runner Brasil
Apesar de ter o mérito de possibilitar alguma diminuição das desigualdades entre os trabalhadores mais ricos e os mais pobres, a reforma que está sendo proposta não leva em conta as mudanças profundas que vêm acontecendo no mercado de trabalho não só do Brasil, mas da maior parte do planeta. Aqui ainda temos o agravante de que o próprio governo vem contribuindo para acelerar esse processo. No sábado (11), entrou em vigor a reforma trabalhista, que deve incentivar a terceirização, o trabalho intermitente e a transmutação de trabalhadores com carteira assinada em “autônomos”.
Para a filósofa e matemática da Universidade Federal do Rio de Janeiro Tatiana Roque, sem mudanças mais profundas, a tendência é o aumento da desigualdade entre aqueles que conseguirão um emprego formal – e portanto vão se aposentar um dia – e aqueles que não conseguirão e envelhecerão largados à própria sorte.
“O sistema de proteção que a gente tem hoje é filosoficamente concebido para um mundo que está deixando de existir”, diz.
Para entender do que Tatiana está falando, basta pensar no Uber e em seus motoristas “parceiros” – o exemplo mais gritante de uma vasta gama de terceirizados, microempresários, prestadores de serviço e freelas de toda a sorte. Atualmente qualquer trabalhador, inclusive autônomo, pode contribuir para previdência, mas os que de fato o fazem, por longos períodos e mesmo sem ter um emprego formal, são a minoria. Renda insuficiente, burocracia e alta rotatividade estão entre os fatores que mantêm parte desses trabalhadores longe do sistema.
Renda universal como opção
Diante dessa realidade, a filósofa e matemática propõe que se discuta a criação de uma renda básica universal como uma solução para as disparidades entre sistema previdenciário e nova realidade trabalhista. Todos os cidadãos em idade adulta receberiam um mesmo valor, até o fim da vida, não importando o trabalho, o sexo, a idade ou o salário no fim do mês.
Uma proposta semelhante a essa, que deixaria arrepiados os sete fios de cabelo de Henrique Meirelles, foi defendida pelo candidato socialista à presidência nas últimas eleições francesas. Seguindo a linha econômica do best-seller Thomas Piketty, o dinheiro para custear essa renda viria de maiores impostos sobre o capital financeiro: fundos de investimento, ações, letras de títulos imobiliários, etc.
A proposta soa um tanto ambiciosa. Mas parece uma boa linha para novos debates, como tem incansavelmente ressaltado um de seus principais defensores, o ex-senador e menestrel das horas inapropriadas, Eduardo Suplicy.
Piketty, em seu livro “O Capital no Século 21”, chama de “utopia útil” a implantação de um imposto mundial sobre o capital para viabilizar a renda universal. “Mesmo que uma instituição ideal não se torne realidade num futuro previsível, é importante tê-la como ponto de referência a fim de avaliar melhor o que as soluções alternativas oferecem ou deixam de oferecer”, escreveu o economista.
Nas eleições francesas, Benoît Hamon, o candidato que defendeu a proposta de renda universal, conquistou um desanimador quinto lugar no primeiro turno, com pouco mais de 6% dos votos. Por outro lado, a Finlândia pôs em prática um teste de renda básica universal no começo do ano. O objetivo é avaliar se o sistema funcionará melhor do que um conjunto de benefícios intermitentes e focados em grupos definidos, como seguro-desemprego, auxílio-moradia e verbas para estudantes. A tese é que um sistema genérico seria muito mais simples, uma vez que dispensaria toda uma infraestrutura burocrática para filtrar aqueles que têm direito a cada benefício. O enxugamento dessa máquina estatal ajudaria a custear um salário básico distribuído para todo mundo.
Na atual fase de testes, dois mil cidadãos passaram a receber cerca de R$ 2 mil reais apenas por terem nascido finlandeses. Parece um salário razoável para os brasileiros. Já para os finlandeses, que recebem em média R$ 12 mil, nem tanto. De qualquer forma, os resultados serão avaliados em 2019, quando o governo decidirá se o mecanismo deve ou não ser expandido para o país inteiro.
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