Desinformação é tática dos órgãos de segurança do Rio de Janeiro para atrapalhar jornalistas

Desinformação é tática dos órgãos de segurança do Rio de Janeiro para atrapalhar jornalistas

Jornalistas de veículos cariocas e correspondentes relatam falta de transparência e obstáculos para conseguir informações que deveriam ser públicas.

Desinformação é tática dos órgãos de segurança do Rio de Janeiro para atrapalhar jornalistas

Pouco tem se falado de um aspecto grave da crise de segurança pública do Rio de Janeiro: a falta de transparência das autoridades responsáveis. Procurados diariamente pelos diversos veículos que cobrem a escalada de violência no Rio, a secretaria e demais órgãos de segurança pública municipais e estaduais ora ficam mudos, ora se fingem de desentendidos – isso quando não atrapalham ou desafiam profissionais de imprensa que buscam vias alternativas para conseguir informações.

“Quando um órgão como a Secretaria de Segurança Pública e as polícias se recusam a ser transparentes e prestar informação com presteza para a imprensa, o cidadão sai prejudicado numa área fundamental da atuação estatal, que é a segurança e a preservação da própria vida”, explica o diretor da Transparência Brasil, Manoel Galdino. Para ele, os órgãos de segurança pública, tradicionalmente, têm uma cultura do sigilo que dificulta a transparência e o acesso à informação.

Muitos jornalistas que buscaram informações com a Secretaria de Segurança (SESEG), Polícias Militar e Civil e o Comando das Unidades de Polícia Pacificadora sobre os dias de caos na cidade do Rio só têm obtido respostas evasivas e repetitivas ou completamente descoordenadas independentemente dos questionamentos feitos.

The Intercept Brasil conversou com jornalistas brasileiros e estrangeiros que cobrem segurança pública no Rio. Os testemunhos são unânimes: os órgãos falam o que querem, se querem, para quem querem e quando querem. Não importa o que você pergunte, se tem entrevista marcada e confirmada, se veio de longe. Vale a lógica do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. E quem não quer ser limado das próximas entrevistas, por mais teatrais que sejam, obedece. Nenhum dos jornalistas que falaram com o The Intercept Brasil serão identificados para evitar retaliação dos órgãos citados.

Veja abaixo dificuldades enfrentadas para obter informações que deveriam ser públicas:

Respostas não solicitadas, perguntas ignoradas

Um repórter americano que escreve sobre segurança pública no Rio há seis anos conta que, muitas vezes, as assessorias indicam que estão cientes do contato, mas ignoram as perguntas. Ele explica ainda que as polícias até costumam dar mais atenção a dúvidas sobre mortes decorrentes de intervenção policial – mas, mesmo em relação a esse tema delicado para a instituição, as informações são frequentemente vagas. “E se eu me virar para buscar a informação por mim mesmo, ainda sou questionado. Já recebi reclamações do assessor de imprensa da SESEG, que me perguntou: ‘Por que você não procurou informações da secretaria?’ Eu procuro, mas não vou me desgastar para receber uma informação inútil se eu tenho informações suficientes e apuradas”, afirma ele.

Entrevistas negadas ou desmarcadas

“As entrevistas exclusivas são negadas sempre”, conta um repórter de um dos maiores sites de notícias do país. “Quando consegui uma com o secretário [de Segurança Pública] Roberto Sá, ela foi desmarcada no mesmo dia, em cima da hora. E isso não aconteceu só comigo”, explica ele, que diz ter a sorte de ter fontes que lhe permitem pegar atalhos e evitar o caminho oficial para obter informações por trabalhar na área há muitos anos.

“Todas as demandas precisam ser encaminhadas por e-mail. E mesmo que a gente envie perguntas sobre as ocorrências, recebe uma nota padrão com informações incompletas. […]  Honestamente, a gente já se contentou com pedir “notinha” quando é sobre operação, porque sabe que é o que eles enviam”, explica um repórter de um jornal estatal, que cobre segurança há 4 anos.

 Obstáculos

“Na Polícia Civil, quando você os questiona, eles mandam inúmeras notas que não dizem nada. Há um tempo, havia uma política de passar os telefones de delegados e tal. Isso acabou sei lá por quê. E atrapalha — muito”, diz um repórter de um grande site de notícias.

Copia e Cola

“A impressão geral é que eles dão um ‘copiar e colar’ nas respostas, porque são todas muito parecidas, sempre no gerúndio: ‘Estamos apurando’, ’estamos investigando’”, explica um jornalista de um veículo internacional.

O que ele diz é confirmado por outro colega: “As notas da Polícia Civil em geral são padrões, informando algo como ‘A Delegacia de Homicídios está realizando diligências para elucidar o crime. Testemunhas estão sendo ouvidas e uma perícia será feita no local.’ As notas da Polícia Militar são um pouco melhores, mas ainda trazem poucos detalhes sobre as ocorrências. Em geral, quando fazemos alguma pergunta que não está na nota, eles ou ignoram ou nos respondem com a mesma nota.”

IMPRENSA-SEGURANÇA-RIO

Respostas incansavelmente repetidas

Reprodução Internet

“Sensibilidade”

“A Secretaria de Segurança é muito sensível com perguntas. São várias pessoas que trabalham lá, e você nunca sabe quando uma delas vai estourar, tipo: ‘Você fez a pergunta tal para pessoa tal! Você sabe que essa pergunta tem que vir pra mim!’. Já ouvi isso. Por que você tem mais de uma pessoa que responde pela assessoria se eu não posso mandar perguntas para qualquer um deles?”, questiona uma repórter internacional.

Uns valem mais que outros

Já um repórter de um jornal local de pequena circulação conta que raramente consegue obter informações. Nas vezes em que não é ignorado, as respostas sobre número de feridos em um confronto armado, por exemplo, costumam “fugir à realidade”.

“Para responder eles são ruins, mas adoram enviar release de ações da Secretaria de Segurança Pública. Quero ser inserido no mailing comum. Mas só me mandam coisas do tipo ‘Policiais da UPP levam crianças a museu’. Se a comunicação com a imprensa é ruim, imaginem com a comunicação comunitária”, reclama.

Pesquisadores também relatam dificuldades de acesso à informação

Dados sobre segurança ou são inacessíveis ou exigem um real esforço para tabular, somar, dividir. O modo como estão disponibilizados no site do Instituto de Segurança Pública (ISP) não é para simplificar a vida do cidadão que quer acessar informações públicas. Tem que ser especialista.

“Devido à organização em que trabalho, eu tenho acesso direto ao ISP. Então, eu não tinha exatamente perguntas negadas. O maior problema é que nem todas as informações que são importantes para fazer um diagnóstico da segurança pública são disponibilizadas. O ISP é hoje um dos órgãos de governo que fornece informações de crimes cometidos mais rapidamente. Mas a limitação é que elas, em sua grande maioria, não são georreferenciadas, nem constam informações sobre as vítimas ou criminosos. Além disso, dados sobre contingentes policiais por batalhão, número de viaturas, de armas, são inacessíveis, e utiliza-se a justificativa de que são sigilosos por questões de segurança. O problema é: como a sociedade avalia o trabalho da polícia sem saber como ele é organizado? Isso sem falar de orçamento. Como avaliar o sistema de metas e as UPPs, por exemplo, sem acesso ao que foi gasto?”, questiona uma pesquisadora da área.

“Para ser sincero eu nunca faço perguntas pelos canais oficiais. Porque é uma perda de tempo.”

“Para ser sincero eu nunca faço perguntas pelos canais oficiais. Porque é uma perda de tempo. Como eu já trabalhei dentro dessa estrutura [do ISP], eu sei que ela não funciona desse jeito. Então uso meus contatos pessoais para acessar informações que deveriam ser públicas e não são. Não há acesso público a perfis de vítimas, autores, motivações dos eventos. No DATASUS  – o Departamento de Informática do SUS, que coleta e processa dados sobre saúde – , você consegue informações melhores. Os dados do 190, por exemplo, que a princípio são públicos, são impossíveis de acessar. Te dão mil desculpas. Vão até desqualificar os dados, falar que não dizem nada. O que não é verdade! O que a sociedade está demandando da polícia? Ninguém sabe! A polícia segura a informação por hábito, na maior parte das vezes nem sabe como utilizar a informação que produz. Então ela segura, não usa, mas acha que é uma informação ‘sensível’”, afirma outro pesquisador.

“Total transparência”

Encaminhamos seis perguntas para as assessorias de imprensa dos órgãos de segurança pública do Rio. Questionamos quais os critérios para definir que uma informação é sigilosa; se certos veículos de imprensa são priorizados em detrimento de outros; se recebem orientação da SESEG sobre respostas; se evitam/ignoram certas perguntas; se há alguma regra ou orientação para sempre responder por nota, evitando o contato direto ou por telefone.

A Polícia Civil respondeu com uma única frase: “A Polícia Civil trabalha com transparência total nas ações que pratica. Preserva apenas as informações dos órgãos de inteligência para não prejudicar as investigações em andamento”.

A Coordenadoria de Unidades de Polícia Pacificadora foi na mesma linha: “A assessoria de imprensa da Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) esclarece que trabalha com total transparência na divulgação de suas informações. Apenas dados de Inteligência são reservados ao comando por estratégia de segurança.”

CONTATO-SEGURANÇA-RIO DE JANEIRO - EMAILS

Pedidos de informação são respondidos de forma incompleta. Quando são.

Montagem The Intercept Brasil

A Secretaria de Segurança encaminhou a seguinte nota:

“A Assessoria de Comunicação da Secretaria de Estado de Segurança esclarece que durante todo o fim de semana, as equipes de plantão das assessorias (SESEG/ Polícia Militar / UPP/ Polícia Civil) estiveram disponíveis e em atendimento à imprensa. Todas as vezes que consultadas, se posicionaram. Devido ao caráter operacional, a Coordenadoria de Polícia Pacificadora e o Comando da UPP da comunidade — alinhados com os demais órgãos — divulgaram nota relativa ao caso no domingo (17). Neste mesmo dia, autoridades se reuniram no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), para estabelecer uma estratégia que não colocasse em risco a vida de inocentes. Uma operação conjunta das polícias Militar e Civil foi desencadeada na madrugada de segunda (18) e equipes permanecem não só no local, como em outros pontos considerados estratégicos. Autoridades da área de segurança não se negaram a atender a imprensa, mas mantiveram o princípio de priorizar ações em defesa da população da região afetada. Cabe ressaltar que, no último ano, a Secretaria de Estado de Segurança do Rio de Janeiro (SESEG) ficou em primeiro lugar no ranking nacional de transparência na divulgação de informações sobre Segurança Pública, de acordo com levantamento desenvolvido pelo Instituto Tolerância”.

A Polícia Militar sequer enviou resposta.

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