Michel Temer, o vice nas eleições de 2014 que “não sabe como Deus o colocou” na presidência, escolheu uma outra vice, a subprocuradora Raquel Dodge, para ocupar a Procuradoria Geral da República (PGR). Agora, ela deve passar – sem grandes percalços, como sempre – por uma sabatina no Senado nesta quarta (12) para substituir Rodrigo Janot, que deixa o cargo em setembro. Resumindo, é essa a história da sucessão no comando do Ministério Público Federal (MPF). Com a indicação da segunda colocada numa consulta feita entre procuradores, foi quebrada uma tradição que vinha desde 2003, de escolha do vencedor. Mas podia ter sido bem pior.
Nada determina que saia da lista quem vá efetivamente assumir o cargo. Ou seja, Temer poderia ter escolhido qualquer um.
Pela legislação atual, existe um grande vácuo quando o assunto é a escolha de um dos cargos mais importantes da República, responsável, por exemplo, por denúncias que envolvam autoridades com foro privilegiado, como o próprio presidente. Há apenas uma “tradição” de que seja escolhido para a PGR um dos nomes da lista tríplice indicados através da consulta feita desde o início dos anos 2000 pela Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR). Mas nada determina que seja dali que saia quem vá efetivamente assumir o cargo. Ou seja, Temer poderia ter escolhido qualquer um.
Art. 128 da Constituição. O Ministério Público abrange:§ 1º – O Ministério Público da União tem por chefe o Procurador-Geral da República, nomeado pelo Presidente da República dentre integrantes da carreira, maiores de trinta e cinco anos, após a aprovação de seu nome pela maioria absoluta dos membros do Senado Federal, para mandato de dois anos, permitida a recondução. |
O que preocupa ainda mais é que não parece haver em Brasília nenhuma vontade de mudar isso. Um levantamento feito por The Intercept Brasil mostra que há ao menos três propostas de regulamentação da forma de escolha do chefe do MP Federal na Câmara e no Senado, mas todas se arrastam, sem muita perspectiva de serem votadas. Há ainda outras três que querem mexer nas escolhas dos chefes dos MPs estaduais e do DF. Neste caso, a Constituição ao menos determina que seja respeitada a lista tríplice elaborada com base numa eleição feita entre integrantes da carreira. Mas cabe ao governador decidir quem indicar entre eles.
Há ao menos três propostas de regulamentação da forma de escolha do chefe do MP Federal
No Senado Federal, a regulamentação da lista tríplice para a PGR segue empacada. Randolfe Rodrigues (Rede/AP) é o relator de duas propostas na Casa sobre o assunto. O congressista afirmou que ambos os relatórios estão prontos para serem votados. Bastaria o presidente da CCJ, Edison Lobão (PMDB/MA), colocá-los na pauta. Na Câmara, a proposta do deputado Paulinho da Força (SD-SP) também aguarda entrar na pauta da CCJ, mas não há previsão enquanto a comissão estiver debruçada sobre a denúncia de corrupção passiva envolvendo o presidente Michel Temer.
Alvo da PGR, Aécio é autor de PEC para modificar escolha
Curiosamente, o autor de uma das propostas que tramitam no Senado, a PEC 121/2015, é Aécio Neves (PSDB/MG), que chegou a ser alvo de um pedido de prisão feito pelo atual procurador-geral Rodrigo Janot, em decorrência da Operação Patmos, que tem como base as delações dos executivos do grupo JBS. O STF não acatou o pedido da PGR e ainda devolveu a Aécio o direito de exercer o seu mandato.
O outro texto é ainda mais antigo, a PEC 47/2013, de autoria de Cássio Cunha Lima (PSDB-PB). Ambas as proposições querem formalizar que o novo procurador-geral, cujo mandato é de dois anos, só possa ser escolhido a partir dos integrantes da lista tríplice. A PEC 47/2013 especifica ainda que a eleição deve englobar não só os membros do Ministério Público Federal, como também os MPs do Trabalho, Militar e do Distrito Federal e Territórios. A consulta atual, feita pela ANPR e tradicionalmente usada como base para a escolha presidencial, é realizada apenas entre procuradores do MPF.
Na Câmara dos Deputados, há outras quatro propostas em discussão sobre esse tema. A PEC 186/2016, de autoria do deputado Paulo Pereira da Silva (SD/SP), pede que o novo PGR não apenas esteja na lista tríplice, mas que seja aquele que encabeçar a lista, proibindo a recondução ao cargo. Já a PEC 288/2008, sugerida por Sueli Vidigal (PDT/ES) propõe eliminar a lista tríplice para escolha dos Procuradores-Gerais dos Estados e do DF. Ou seja, o eleito seria única e exclusivamente o primeiro lugar da lista.
Dois textos de autoria do deputado Maurício Quintella Lessa (PR/AL) também não querem saber de lista tríplice: a PEC 183/2003 e a 16/2007 defendem que a escolha dos procuradores-gerais dos Estados seja feita por meio de eleição direta entre os integrantes da carreira, dispensando a possibilidade de nomeação por parte do governador. Ou seja, vence também o primeiro lugar da lista.
A lentidão com que tramitam os projetos que pretendem mudar a escolha para a PGR reflete a postura dos membros do MP sobre o tema, que não chega a ser uma unanimidade. O presidente da ANPR, José Robalinho Cavalcanti, por exemplo, é um dos que creem na tradição para que o procurador-geral saia da lista tríplice:“Fica cada vez mais difícil desrespeitar a lista. Primeiro, tivemos os governos do PT e agora o do PMDB e a escolha de um dos três nomes vem sendo seguida.”
O procurador lembra que a não inclusão da PGR na legislação que determina a escolha pela lista tríplice, como ocorre nos estados, tem origem no fato de a Constituição ter sido redigida antes da criação da Advocacia Geral da União (AGU) em 1993. Ou seja, antes disso, era o procurador-geral o responsável pela defesa do presidente da República, que até hoje faz a escolha exclusiva. Assim que o nome é apontado, ele passa pela sabatina do Senado, como acontece agora com Raquel Dodge.
“Sou a favor da lista porque acho que cada passo da escolha é importante, dá maior densidade ao processo.”
Robalinho diz que não há uma posição consolidada na categoria a respeito de uma mudança não só para que seja adotada por lei a lista tríplice, como para que o primeiro colocado dela tenha de ser respeitado. Mas o presidente da ANPR afirma que sua “posição pessoal” é que o presidente fique livre para escolher entre os três nomes:
“Se houver uma alteração, temos que pensar que ela terá que valer também para todos os estados. Sou a favor da lista porque acho que cada passo da escolha é importante, dá maior densidade ao processo. Tirar do presidente, alguém que tem o crivo do poder democrático, essa possibilidade não é algo que eu considero justo.”
Sobre estarmos num período especialmente crítico, em que a nova procuradora pode dar continuidade a uma denúncia por crime comum envolvendo o presidente, Robalinho pensa que a análise não pode ser feita levando em conta a análise não pode ser feita baseando-se apenas neste caso:
“A gente não pode ser casuístico só porque o presidente está sendo investigado. Claro que há um grau de estranheza no fato de ele escolher alguém que o está investigando, mas pela Constituição, ele tem essa atribuição. Podemos recordar o caso do ministro (Edson) Fachin, do STF. A presidente Dilma o indicou para o tribunal em meio a uma grave crise que terminou no impeachment. E o nome de Fachin é altamente qualificado, não há dúvidas a esse respeito.”
Associação manda cartas a governadores
A Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) tem travado historicamente uma luta para que o primeiro colocado nas eleições dos MPs estaduais e do Distrito Federal seja ratificado pelos governadores, mas nem sempre isso se concretiza. A presidente da entidade, Norma Cavalcanti, conta que ela própria já venceu o pleito na Bahia, mas foi preterida pelo terceiro lugar na disputa.
“Sempre mandamos uma carta ao governador pedindo para que a ordem da eleição seja respeitada, mas sabemos que nem sempre nosso apelo é ouvido”, reclama Norma.
Nem mesmo o irmão de Nicolao Dino, primeiro na consulta da ANPR, o governador do Maranhão, Flávio Dino, optou pelo líder na disputa pelo cargo de procurador-geral de Justiça em seu estado. Foi escolhido o segundo lugar.
Na véspera de escolha, Temer se reuniu com Gilmar Mendes
Em situação tensa desde que foi denunciado por Rodrigo Janot, Michel Temer optou por Raquel Dodge, um nome menos alinhado com o atual procurador do que o primeiro lugar na consulta, Nicolao Dino. Raquel é subprocuradora e atua no STF, em matéria criminal. Entre os casos de repercussão em que atuou está a Operação Caixa de Pandora, que desvendou um esquema de corrupção no DF.
Na véspera da escolha da indicada para a PGR, Temer teve uma reunião com o ministro do STF Gilmar Mendes e os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral). O Planalto negou que o encontro tivesse tido como tema a indicação. Mendes é crítico de Rodrigo Janot e tido como um dos grandes defensores da indicação de Raquel para o cargo.
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