Na última quinta-feira, foi aberta em Nova Iorque a Bienal do Whitney Museum, a mostra de arte mais antiga dos Estados Unidos, com o trabalho de sessenta e três artistas e coletivos. Ao lado da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza, ela é das mais importantes do mundo, um sismógrafo que registra os deslocamentos tectônicos do mundo da arte. E, como o próprio texto de apresentação aponta, aterrissa no prédio novo do museu no Meatpacking District “num tempo de tensões raciais, desigualdades econômicas e polarização política”.
Trata-se de panorama irregular e arriscado, como costumam ser exibições do tipo, mas em todas as obras há semelhante nota de fundo, o tom assustado de quem acorda e descobre que subitamente tornou-se vítima da História. Com a vista embaçada e a respiração ofegante de quem acabou de levar um soco no nariz – no caso, o início da Era Trump na primeira vez em vinte anos em que a montagem da Bienal coincidiu com uma eleição americana.
Para quem acompanhou arte contemporânea nas últimas décadas, a mostra sugere uma mudança profunda: o susto que foi 2016 e o sentimento de urgência que o acompanhou parecem impossibilitar qualquer traço de ironia. Arte contemporânea sincerona? Não é pouca coisa.
Aqui as obras mais marcantes são as mais diretas, como no quadro onde o pintor Henry Taylor reproduz em cores saturadas e traços fortes um frame do vídeo de celular onde Diamond Reynolds registrou – e transmitiu ao vivo no Facebook – a morte do namorado Philando Castile, assassinado pela polícia em julho de 2016 numa blitz. O coletivo norte-americano Postcommodity retrata numa instalação quadridimensional de vídeo o ponto de vista de alguém atravessando a fronteira do México – sem nunca atravessá-la –, e há um estupendo óleo de Dana Shutz retratando o caixão aberto de Emmett Till, talvez o quadro mais marcante de uma mostra que tem na figuração sobre tela seus pontos fortes.
Em outros museus a segregação racial também está no centro do palco. No centro cultural BRIC, no Brooklyn, há uma exibição de retratos da muralista Tatyana Fazlalizadeh sob o título “Not going anywhere”. Seu trabalho reflete o cotidiano das mulheres negras na América – e o sexismo e a xenofobia parecem ameaças maiores sob Trump. Vale reproduzir o texto que acompanha um dos grandes painéis com o rosto de ativistas: “A América é negra. É indígena. Veste hijab. Fala espanhol. É uma mulher. Está aqui, esteve aqui e não vai a lugar nenhum”.
Essa discussão do que “é” a América igualmente influenciou a programação dos filmes em cartaz nessa temporada nos Estados Unidos. É inegável que o contexto político – a eleição de Trump e os boicotes do ano passado – fez parte dos Oscars. Dos cinco candidatos a melhor documentário, três tratam de questões raciais – o épico “O.J. Simpson: Made in America”, um retrato multifacetado do país através do caso, levou o prêmio. A cerimônia também premiou como melhor longa–metragem – não sem percalços históricos – “Moonlight”, um drama sobre um jovem negro homossexual, e Viola Davis e Mahershala Ali como melhores atores coadjuvantes. No ano passado, o reverendo Al Sharpton declarou que aquele seria o último Oscar completamente branco. Esperemos que tenha razão.
Vi todos esses filmes essa semana aqui em Nova Iorque. É como se contassem a mesma história de luta contra a o racismo sob diferentes perspectivas: a marginalização, a violência policial, a opressão contra as mulheres, o encarceramento em massa, a construção midiática do negro como ameaça. O tema é inevitável – como não poderia deixar de ser.
Também é inevitável fazer o contraste com a produção exibida na última Bienal de São Paulo e com os filmes brasileiros que ganham maior visibilidade na imprensa e nas bilheterias. Com raras exceções, entre ficção e documentário, entre individuais em galerias de arte e grandes mostras, a impressão é a de que no Brasil vivemos o sonho da democracia racial.
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