Glenn Greenwald

Trump não pode ser combatido até que o Partido Democrata seja curado

Oficiais do partido parecem proteger e enraizar a mesma mentalidade que acabou por eleger Trump.

WATERLOO, IA - JANUARY 11:  Democratic presidential candidate Hillary Clinton speaks during a campaign stop at the Electric Park Ballroom on January 11, 2016 in Waterloo, Iowa. Clinton continues her quest to become the Democratic presidential nominee.  (Photo by Joe Raedle/Getty Images)

Os mais preocupados com o governo de Trump devem ser os mais concentrados em como consertar as enfermidades sistêmicas e fundamentais do Partido Democrata dos EUA. O fato de Hillary Clinton ter vencido o insignificante voto popular na derrota para Donald Trump, aliado ao fato de Barack Obama ter se mantido popular por conta de seu carisma único, fez com que muitos ignorassem o quão falido e fracassado está o Partido Democrata como força política nacional.

Podem ser listadas inúmeras estatísticas surpreendentes para demonstrar a extensão desse colapso. Porém, talvez a mais convincente evidência seja o fato de um dos membros da mídia americana mais leais ao Partido Democrata, escrevendo para um veículo que opera como órgão de confiança do partido de forma tão fiel quanto o próprio Comitê Nacional do Partido Democrata, admitiu a dimensão de sua aniquilação. “A era Obama criou um Partido Democrata que é fundamentalmente uma pilha de escombros fumegante”, escreveu Matthew Yglesias do site Vox após o fracasso de 2016, acrescentando que “a história do Partido Democrata do século XXI parece ser predominantemente uma história de fracassos”.

Um partido fracassado e aniquilado não pode oferecer uma resistência eficaz. Não foi por conta de um grande aumento no apoio ao extremismo de direita que Trump se tornou presidente e o Partido Republicano domina praticamente todos os níveis do poder. Muito pelo contrário: isso aconteceu porque os democratas são encarados — com razão — como robôs com discurso preparado, artificiais e fora da realidade, que servem ao mercado financeiro de Wall Street, ao setor tecnológico do Vale do Silício e à agenda de guerras intermináveis liderados por millionários e financiados por oligarcas para fazer o mínimo possível por cidadãos comuns impotentes ao mesmo tempo que mantém seus votos.

O que alimentou o impressionantemente poderoso desafio de Bernie Sanders frente a Hillary Clinton foi a extrema hostilidade de grande parte dos democratas — por parte de seus eleitores mais jovens — aos valores, práticas e lealdade corporativa ao establishment do partido. Diferentemente da disputa nas primárias do Partido Democrata em 2008 — que foi muito mais sórdida e cruel, ainda que desprovida de qualquer conflito ideológico real —, as primárias de 2016 foram baseadas em uma disputa importante e substancial sobre o que é de fato o Partido Democrata, quais princípios devem guiá-lo e, principalmente, a quais interesses deve servir.

Por isso, essas disputas não se dissiparam com a posse de Trump, e é exatamente assim que deve ser. É muito importante, talvez o mais importante aspecto de todos, quem lidera a resistência a Trump e qual a natureza dessa oposição. Todo mundo conhece o clichê popular que diz que insanidade significa fazer a mesma coisa diversas vezes esperando um resultado diferente. Isso ilustra bem o motivo pelo qual os membros do Partido Democrata não podem continuar dessa forma e esperar algo que não seja impotência e fracassos constantes. A insistente recusa do partido em alterar sua direção, mesmo que de forma simbólica — elegemos assim por aclamação Chuck “Wall-Street” Schumer e reinstauramos Nancy “Sou-multimilionária-e-Somos-Capitalistas” Pelosi — não colabora com o futuro do partido.

Tradução: Herói de Wall Street colhe benefícios

Em suma, exigir repetidamente que alguém se prive de criticar o Partido Democrata para poder atacar exclusivamente Donald Trump é como exigir que alguém critique o câncer de forma simplista, ignorando quem é o médico responsável pelo tratamento ou que tipo de pesquisa está sendo realizada para a sua cura. Trump foi eleito por conta do fracasso dos democratas. E fenômenos como ele (ou ainda piores) continuarão a acontecer até que isso seja resolvido.

 

A clara insistência dos líderes do establishment democrata em seguir esse mesmo caminho sombrio e fracassado explica por que a corrida pela presidência do Comitê Nacional do partido está tão disputada. Na realidade, o cargo é majoritariamente operacional — focado principalmente na captação de recursos e organização do aparato partidário em nível de Estado —, mas seu ocupante funciona como uma figura pública importante do partido.

Nos últimos cinco anos, a principal figura pública do Comitê foi alguém que personifica perfeitamente tudo o que há de mais terrível no partido: o abutre centrista, corporativista, corrupto de quinta, Debbie Wasserman Schultz, que — devido às publicações dos e-mails do Comitê pela WikiLeaks — teve de pedir demissão, desmoralizada após ser apanhada trapaceando na tentativa de garantir a nomeação de Hillary Clinton como candidata do partido.

Mas tal desmoralização não durou: após pedir demissão, foi rapidamente recompensada pela corrupção sendo nomeada para uma posição do alto escalão da candidatura de Clinton, além de receber o apoio do establishment do partido em Washington, liderados pelo ex-vice-presidente Joe Biden e pela própria Clinton, para enfrentar o candidato de Bernie Sanders para sua vaga no Congresso Nacional dos EUA. Como resultado do apoio do establishment do partido (assim como doações corporativas e do setor financeiro gigantescas), a candidata derrotou o adversário, Tim Canova, e a nação pode comemorar seu retorno ao Congresso Nacional dos EUA pela sétima vez.

Tradução: Biden assume o bastão na luta pela presidência do Comitê Nacional do Partido Democrata

Wasserman Schultz foi substituída na vaga de presidente do comitê interinamente pela antiga funcionária do partido Donna Brazile, que logo teve um escândalo para chamar de seu ao ser apanhada passando perguntas do debate da CNN para a campanha de Clinton e, em seguida, mentindo inúmeras vezes ao negar o ocorrido e insinuar que os e-mails foram forjados pelos russos. Por essa conduta, a CNN a demitiu, e o âncora do canal Jake Tapper qualificou a trapaça como “terrível” e o próprio canal disse estar “completamente desconfortável” com o ocorrido.

Mas Brazile continua no cargo até hoje. Pense nisso: o comportamento de Brazile foi tão antiético, desonesto e corrupto que até mesmo a CNN de Jeff Zucker teve de denunciá-la e se distanciar dela publicamente. Mas o Comitê Nacional do partido parece estar perfeitamente confortável que ela continue a liderar o partido até que o próximo presidente seja escolhido.

Talvez ainda mais grave do que as trapaças em série seja o fato de tudo isso ter sido feito para coroar uma candidata que — como muitos de nós tentamos alerta à época — todos os dados empíricos demonstravam ser mais vulnerável na corrida contra Donald Trump. Portanto, exatamente as mesmas pessoas responsáveis pela vitória de Trump — trapaceando para fazer vencer o candidato democrata mais suscetível a perder — continuam a dominar o Partido Democrata. Descrever a situação é demonstrar a urgência do debate, em vez de ignorá-lo em nome de falar exclusivamente de Trump.

 

No começo da disputa pela presidência do Comitê, Keith Ellison — o primeiro muçulmano da história a ser eleito para o Congresso dos EUA e, evidentemente, um apoiador de Bernie Sanders parte da ala esquerda do partido — surgiu como claro favorito. O candidato foi endossado não apenas por progressistas como Bernie Sanders, Elizabeth Warren e Jesse Jackson, mas também por figuras tradicionais do partido, como Walter Mondale, John Lewis e o próprio Schumer, que parece reconhecer que arremessar algumas migalhas simbólicas para a ala de Sanders do partido é uma estratégia inteligente frente a amargura constante que muitos parecem acumular quanto ao comportamento do Comitê e às políticas neoliberais da ala centrista do partido.

Rep. Keith Ellison, D-Minn. joins low-wage workers at a rally outside the Capitol in Washington, Monday, April 28, 2014, to urge Congress to raise the minimum wage as lawmakers return to Washington following a two week hiatus. Democratas vêm pressionando pelo aumento do salário mínimo, mas mesmo se a lei for aprovada no Senado, é certo que será ignorada pelo Congresso, controlado por republicanos.  (AP Photo)

Photo: AP

Mas o establishment do partido entrou em pânico. Tudo começou quando o bilionário americano de origem israelense Haim Saban — o maior financiador individual do Partido Democrata e da campanha de Clinton — atacou Ellison por ser “um indivíduo antisemita e anti-Israel” e disse que sua eleição “seria um desastre para o relacionamento entre a comunidade judaica e o Partido Democrata”. Na cabeça dos articuladores de Washington, não se pode ter alguém como presidente do Comitê que seja antipático a financiadores bilionários. Esse é o Partido Democrata.

A guerra contra Ellison estava declarada: membros do partido começaram a vazar para a mídia comentários controversos dos tempos de escola sobre Louis Farrakhan e Israel. O New York Times começou a publicar reportagens com manchetes como “Grupos judeus e sindicatos apreensivos com Keith Ellison” — uma manchete estranha já que Ellison foi endossado por diversos sindicatos, incluindo a AFL-CIO (Federação de Organizações Trabalhistas), o Sindicato dos Metalúrgicos dos EUA, o sindicato UNITE HERE e a organização International Brotherhood of Electrical Workers (Irmandade Internacional dos Eletricistas), entre outros. Foram publicadas até mesmo multas de estacionamento pendentes dos anos 90, graças a alguns articulistas sujos do partido.

O ataque à candidatura de Ellison foi formalizado quando a Casa Branca de Obama contratou e prometeu apoiar um de seus mais leais parceiros, o secretário do trabalho Tom Perez. Assim como fez ao endossar Wasserman Schultz, Biden oficializou o apoio do establishment a Perez em anúncio público na semana passada.

Tradução: Biden endossa Perez na corrida pela presidência do Comitê Nacional do Partido Democrata

Perez é um progressista manso e uma figura de confiança do partido: antes da votação das primárias, ele apoiava Clinton em detrimento de Sanders e se tornou um de seus substitutos de maior destaque. Apesar de alegar ser fiel aos trabalhadores americanos, era apoiador da Parceria Transpacífica (TPP), mesmo após Clinton ser forçada fingir oposição a parceria.

Não é difícil entender por que os círculos de Obama e Clinton têm preferência por ele, em lugar de Ellison. Grandes doadores o aceitam melhor. Ele demonstrou lealdade à agenda do establishment do partido. É membro de confiança do partido. E, acima de tudo, não mudará nada importante: garantindo que as mesmas políticas, retórica e facções que sempre prevalecerem continuem imutáveis. Ao mesmo tempo em que protege a base de poder dos mesmos indivíduos que destruíram o partido.

 

Dois incidentes recentes destacam com clareza por que Tom Perez personifica perfeitamente o status quo do Partido Democrata. O primeiro ocorreu há duas semanas, quando meu colega Zaid Jilani compareceu a um evento em que Perez era palestrante. Jilani perguntou ao democrata inúmeras vezes a respeito dos abusos de direitos humanos de Israel — que foram noticiados naquela semana por conta das novas demolições de casas palestinas pelas Forças de Defesa de Israel (BDS) e porque Perez tinha sido perguntado a respeito de sua opinião sobre o boicote a Israel por conta de décadas de ocupação na Palestina.

Com o Partido Democrata sendo dominado por Saban e outros, observe como esse exemplo de coragem que pretende liderar o partido inteiro respondeu:

https://twitter.com/ZaidJilani/status/822930660675489792

Tradução: Tom Perez condena BDS no debate pela presidência do Comitê então perguntei o que achava das demolições em Israel

Um acontecimento ainda mais ilustrativo ocorreu na quarta-feira à noite. Perez estava em Kansas fazendo campanha para líderes locais e foi perguntado sobre a necessidade do partido reter o apoio da ala Sanders. Surpreendentemente, Perez descarregou uma verdade que membros do partido até hoje escondem e se negam a admitir, mesmo frente a uma enorme quantidade de evidências a comprovando: Perez disse o seguinte:

Ontem, ouvimos de forma alta e clara dos apoiadores de Bernie Sanders que o processo foi fraudulento, e foi mesmo. E temos que ser honestos quanto a isso. Por isso, precisamos de um presidente transparente.

Essa é uma admissão e tanto vinda do próprio candidato do establishment do partido: “o processo foi fraudulento”. E, de forma louvável, Perez reconheceu a importância da admissão — “honestos quanto a isso” — porque “precisamos de um presidente transparente”.

Mas o compromisso de Perez com a “transparência” e com ser “honesto” não durou muito. Após a previsível controvérsia causada pela admissão — com apoiadores de Clinton furiosos com a verdade —, Perez demonstrou o mesmo tipo de liderança que ficaram evidentes quando Zaid Jilani o perguntou sobre as violações de direitos humanos de Israel.

Ele rapidamente disparou uma série de tweets retirando o que havia dito, alegando ter se equivocado (usando o termo praticamente ininteligível no inglês “misspoke”, que significa falar de forma incorreta), se desculpando e declarando Hillary Clinton como a merecida vencedora:

Tradução: Amigos me perguntaram sobre uma declaração e quero esclarecer algo que disse [incorretamente]

Tradução: Como disse inúmeras vezes, não podemos ter primárias em que parece que havia um dedo na balança

Tradução: Hillary foi nomeada de forma justa e clara, e recebeu mais votos nas primárias e presidenciais do que seus adversários.

Para garantir que não houvesse dúvida quanto à sua declaração de lealdade, o último tweet foi fixado no topo de sua página. (Além disso, acrescentou um par de banalidade obscuras e vazias sobre a importância da transparência, objetividade e “luta”.)

É possível observar na conduta de Tom Perez a mentalidade e postura que moldou o Partido Democrata: a defesa dos acordos de mercado livre que eliminam empregos e são adorados por doadores corporativistas; uma incapacidade de falar de forma honesta usando desesperadamente um roteiro preparado com base em pesquisas de opinião; um medo paralisante de falar de questões controversas, mesmo (e especialmente) quando se referem a violações graves de direitos humanos por parte de aliados; um compromisso quase religioso em não ofender doadores milionários; e uma disposição ilimitada a se rebaixar em busca de poder, submetendo-se a um ritual de desculpas por ter dito a verdade.

Esse é o modelo que levou o Partido Democrata a um buraco tão profundo que até o site Vox reconhece o desastre completo sem precisar usar eufemismos. Esse é o modelo que alienou eleitores de todo o país nas eleições para todos os níveis de governo e que possibilitou a vitória de Donald Trump. E é o modelo que os líderes do establishment do partido estão cada vez mais determinados a proteger e enraizar, garantindo que mais um funcionário que o personifica se torne a cara do partido.

Poderíamos investir todo nosso tempo e energia atacando Donald Trump. Mas, até que as causas sistêmicas que criaram as condições para sua vitória sejam entendidas e resolvidas, esses ataques não terão resultados além de aplausos lisonjeiros nas redes sociais daqueles que já se dedicam a atacá-lo. O foco e tentativa de resolver as falhas fundamentais do Partido Democrata não é uma distração da resistência (#TheResistance) a Trump; é uma prioridade central, um pré-requisito para qualquer tipo de sucesso.

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