Em 1998, o ex-professor da USP e então presidente Fernando Henrique Cardoso, aposentado compulsoriamente pelo AI-5 com 37 anos, chamou de “vagabundo” o trabalhador que decide se aposentar com menos de 50 anos.
Quase 20 anos depois, o relator da Reforma da Previdência, Alceu Moreira (PMDB-RS), aproveitou o revival dos anos 90 promovido por Michel Temer e revisitou o Príncipe da Sociologia ao chamar aposentado de “vagabundo remunerado”. Logo ele, que já foi condenado por improbidade administrativa e é alvo de inquérito que apura crimes da Lei de Licitações e corrupção passiva. Mesmo tendo um patrimônio robusto, que aumentou 67% entre 2010 e 2014, Moreira foi agraciado com um mimo do presidente não-eleito: uma doação de R$ 50 mil para sua última campanha eleitoral. Ele também é um dos líderes da bancada ruralista e considera demarcação de terras indígenas e quilombolas uma “vigarice”.
É com todo esse carinho pelo povo e respeito pela coisa pública que o grupo político que tomou o poder pretende instalar uma reforma previdenciária que exigirá do trabalhador a idade mínima de 65 anos para receber o benefício.
Não se discute a necessidade de mudanças que corrijam distorções no sistema previdenciário. Este é um ponto pacífico. Mas, Michel Temer, que se aposentou com 55 anos, quer empurrar goela abaixo uma reforma que limita os direitos dos trabalhadores com a justificativa de que há um rombo na Previdência.
A Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (Anfip) e alguns economistas discordam e consideram que há superávit no caixa da Seguridade Social de aproximadamente R$ 54 bilhões. O problema é que a criação da DRU (Desvinculação de Receitas da União) em 95 permitiu que o governo desvie o dinheiro da aposentadoria para outras áreas, como por exemplo os juros da dívida pública – prática que vem sendo seguida por todos os governos até aqui.
Enquanto os trabalhadores têm seus direitos restringidos, bancos se beneficiam duplamente: pelo enriquecimento com os juros e pelo aumento da procura da população por um plano privado de previdência. No fim das contas, a Reforma da Previdência tem a mesma função da PEC 55: empurrar a conta da crise para a massa trabalhadora.
A grande imprensa, como já era de se esperar, abraçou a proposta do governo com muito entusiasmo. Há pouquíssimo espaço para debate, e os colunistas mais prestigiados apontam como a única solução para salvar o país de uma tragédia previdenciária que se avizinha. Praticamente todos os especialistas entrevistados estão alinhados ao governo. Há uma narrativa única nos meios de comunicação, com raríssimas exceções.
Depois do Roda Viva fazer uma entrevista em forma de chá das 5 com Temer e depois da Isto É tê-lo eleito o grande brasileiro de 2016, imaginei que os principais veículos iriam dar uma maneirada no chapabranquismo para não dar tanto na cara. Mas eis que a revista Exame, da Editora Abril, nos brinda com uma capa que mostra que o puxassaquismo continua forte nas paradas, sem pudor e com muita ostentação:
No Facebook, a revista apresentou a nova edição assim:
Não parece jornalismo. Parece uma mensagem motivacional de um livro de auto-ajuda do Lair Ribeiro. Ou uma peça publicitária da assessoria de comunicação informal do Planalto, o MBL, que foi convocado por Temer “para pensar como tornar reformas mais palatáveis”. É o velho cacoete dos tarados pela meritocracia em transformar a exceção em regra. Quer ficar rico e não depender de aposentadoria? Acorde cedo, arregace as mangas e trabalhe duro como Roberto Justus. É como se os olhos azuis do publicitário filho de imigrantes húngaros não lhe oferecessem nenhum privilégio na corrida da ascensão social do capitalismo.
Quer trabalhar até o fim da vida e ser feliz sem aposentadoria? Seja como Mick Jagger! Você pode não ter o rebolado dele, mas poderá também “trabalhar velhice adentro”. Basta se preparar, “vai ser ótimo”. É como se garis, carvoeiros e cortadores de cana desfrutassem das mesmas condições sociais do rockstar londrino para se prepararem para o futuro. Não importa que esses trabalhadores não tenham aquele rebolado sexy nem acumulado uma fortuna em torno de R$ 1 bilhão. Se organizar direitinho, todo trabalhador vai trabalhar feliz até a véspera do seu velório.
O cachê dos Rolling Stones não sai por menos de US$ 2 milhões por show, enquanto o salário médio do brasileiro é de R$ 1.853,00. A comparação da Exame ganha tons ainda mais humorísticos quando descobre-se que Jagger tem direito a receber não só aposentadoria do governo britânico, mas também à instalação de um isolamento térmico gratuito no telhado de sua casa – um benefício dado a todo britânico com mais de 70 anos. São essas realidades que a revista quis comparar.
Mas nem sempre foi assim. No Twitter, o pesquisador George Macedo lembrou dessa capa da EXAME de 2012:
Em apenas 4 anos, a revista trocou o pessimismo da pergunta “Precisamos trabalhar tanto?” para o otimismo da afirmação: “você terá de trabalhar velhice adentro. A boa notícia: preparando-se, vai ser ótimo”.
Portanto, trabalhadores brasileiros, virem Mick Jagger antes da Reforma da Previdência. Vai ser ótimo.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
Você está pronto para combater a máquina bilionária da extrema direita ao nosso lado? Faça uma doação hoje mesmo.