Hå muito tempo, quando menos se esperava, era chegado o natal de 2016. E, com ele, o ar elétrico e abafado pelas ruas de dezembro, os votos ocos de boas festas, a corrida pelas compras em tempos amargos, as festinhas da firma, onde colegas competiam pela melhor viagem no réveillon. A euforia do décimo-terceiro, para os que ainda tinham o privilégio.
Nada disso nem sequer fazia parte dos pensamentos de LĂșcio, o lĂșcido. Nosso personagem ultrapassava consumidores hipnotizados por vitrines ou pedintes acampados nas calçadas da mesma forma: taciturno, arredio e isolado como uma ostra. Pouco importava que naquele natal sem neve ou gelo fizesse 40 graus. NĂŁo haveria calor capaz de aquecĂȘ-lo.
AtĂ© porque nĂŁo havia tempo a perder. O noticiĂĄrio nĂŁo seria ofuscado por luzes natalinas. Ao contrĂĄrio: as coisas nĂŁo paravam de acontecer, quer fossem atentados, massacres ou reviravoltas polĂticas. LĂșcio, o lĂșcido, trabalhava num campo estĂĄvel e prĂłspero, ainda que sempre reclamasse de falta de dinheiro. Operava, com razoĂĄvel desenvoltura, no mercado das opiniĂ”es.
Numa dessas tardes, saindo de um cafĂ©, encontrou um amigo na rua. LĂșcio tentou abreviar ao mĂĄximo a conversa, atĂ© que veio a despedida protocolar.
– Bom Natal e um feliz ano novo! – disse o jovem.
– VocĂȘ tambĂ©m? NĂŁo aguento mais essa bobagem.
– O quĂȘ?
– VocĂȘ lembra do ano passado? Lembra que as pessoas todas se disseram a mesma coisa, nĂŁo? âFeliz ano novo…â
– Ă verdade.
– E o que aconteceu?
– O quĂȘ?
– 2016. 2016 aconteceu, idiota! O pior ano da histĂłria: Brexit, Trump… A besta do Michel Temer! Uma tragĂ©dia! Tamo fodido… Olha, tenho saudade de quando a gente ficava discutindo sobre o Ed Motta xingando o pĂșblico dele que pedia “Manuel” na Europa, ou reclamando da mĂdia por causa da notĂcia do Caetano atravessando a rua no Leblon… Agora Ă© sĂł desgraça. E nunca tanta gente morreu! Eu tou desistindo, cara.
Fez uma cara de đ e saiu, chiliquento, pisando em poças, chutando pedrinhas, ruminando as palavras âFeliz 2016!?â Lembrou da garrafa de champanhe que, logo ele, um cĂ©tico, havia estourado na hora da virada. O ĂĄlcool sempre lhe aliviava a lucidez e beber foi o que fez quando chegou em casa, um cubĂculo que dividia com seus livros, palco da sua extraordinĂĄria solidĂŁo.
Passou seis horas rolando a timeline, se aborrecendo com a realidade, rabiscando textĂ”es e comprando brigas com desconhecidos. âSe antes dizĂamos que pessimistas eram realistas, agora a realidade estĂĄ superando qualquer pessimismo…â Cada vez que vaticinava o fim do mundo e tentava emplacar alguma lacração, entupia ainda mais o cĂ©rebro de cortisol. Tomou um par de pastilhas para dormir.
O relĂłgio de parede bateu uma hora da manhĂŁ, lĂșgubre e melancĂłlico. A claridade, as cortinas agitadas, o bafo frio soprando pela soleira da porta: Ă© nessa hora que aparece o EspĂrito dos Natais Passados, como jĂĄ espera o leitor. Logo veremos que nĂŁo serĂĄ para lembrar o protagonista rabugento das suas alegrias, como no conto de Dickens.
Passado o susto e a apresentação dos personagens, os dois deram as mĂŁos e atravessaram a parede do quarto. Do outro lado, havia um descampado prĂłximo a um rio. Era uma tarde iluminada e aparentemente normal, nĂŁo fosse o silĂȘncio e o ar imĂłvel. LĂșcio, o lĂșcido, pensou estar no meio do nada, sem qualquer sinal de vida, desabitado atĂ© pelas formigas. Seria o purgatĂłrio?
Ao ouvir uma explosĂŁo, percebeu que estava em lugar muito pior. Logo se viu rodeado por tropas francesas e inglesas, adolescentes erguendo baionetas e ultrapassando trincheiras, avançando contra as linhas alemĂŁs. LĂșcio viu centenas de soldados caindo por minuto – morriam como galinhas num matadouro. Aquilo era a Batalha do Somme, conflito da Primeira Guerra Mundial que vitimou 1,2 milhĂ”es de soldados em cinco meses de pesadelo.
O EspĂrito do Natal, um velho com expressĂ”es infantis e tentĂĄculos no lugar dos braços, arrancou LĂșcio de 1916 para ver guerrilheiros sendo executados no Araguaia, no Brasil de 1974 e civis sob a custĂłdia do Estado no Carandiru em 1992. No espaço de uma caminhada, o EspĂrito do Natal tambĂ©m levou LĂșcio para Ruanda em 1994, para o EstĂĄdio Nacional de Santiago em 1973, para Nanquim em 1937, para Srebrenica em 1995, para o Camboja em 1975, para a Ucrania em 1933.
O EspĂrito conduziu LĂșcio, mĂŁos dadas e olhos abertos, para o centro do massacre, para as casas das famĂlias que esperavam entes desaparecidos e para os atapetados gabinetes dos arquitetos da destruição. Depois, caminharam pelos mesmos lugares no ano seguinte, trĂȘs anos depois e dĂ©cadas depois, quando jĂĄ se inauguravam placas e monumentos. Os sobreviventes choraram os mortos, os conflitos resolveram-se, adiaram-se, foram substituĂdos por outros. A maioria fez o melhor que pode a cada momento, um dia depois do outro. Sobreviveu-se.
Ainda que o relĂłgio na parede da casa mal tivesse ganho um minuto depois de uma hora da manhĂŁ, quando abriu os olhos na cama, LĂșcio, o lĂșcido, pouco conseguia lembrar da vida que tinha no Brasil de 2016. Despertou da longa jornada com o espectro soprando, ao pĂ© do ouvido, a frase que iria lhe assombrar pelo resto dos seus dias:
FIM, FELIZ NATAL E UM PRĂSPERO 2017
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