“Há uma falha em tudo. É assim que a luz entra.”
Os versos acima são dos mais célebres de Leonard Cohen, morto na semana passada – neste momento em que parece impossível enxergar qualquer luz, apesar de haver rachaduras em tudo.
Afundados até as canelas na várzea da política, escolhemos a sombra ao buscar culpados e distribuir o “j’accuse” nosso de cada dia – nessa semana em especial, contra a própria esquerda, a mídia e o Facebook. De concreto, nenhum objetivo além o de provar a nós mesmos que somos diferentes de quem desprezamos e, cada vez mais, nos distrair dos nossos medos. Vivemos pisando sobre os cacos do que um dia foram nossas certezas, com o temor cada vez maior de acordar sem reconhecer o mundo ao nosso redor ou, pior, a nós mesmos.
A espiral de desconstrução que atravessamos, sob uma escala de acontecimentos grande demais para que possamos dar conta, parece ter libertado de uma vez só o recalque de civilizações. Um dos fundamentos da psicanálise, o conceito de recalque (“die Verdrängung”) explica o mecanismo de defesa que suprime certas pulsões, mantendo-as ocultas no nosso inconsciente. Esse conteúdo recalcado tende a reaparecer na forma de neuroses e outros sintomas psicopatológicos – imagine agora isso em escala nacional ou global.
“Não vai ter Copa” e “Fora Temer” viraram o “Toca Raul” da política brasileira
Quando slogans como “Não vai ter Copa” e “Fora Temer” viraram o “Toca Raul” da política brasileira e a utilidade de institutos de pesquisa e agências checadoras de fatos é desmoralizada pelo resultado da eleição mais importante do mundo, vivemos um esvaziamento geral do discurso. As palavras “certas” não apenas perderam importância, como tampouco vão nos remover do atoleiro.
Afinal, não fez qualquer diferença para seus eleitores que Trump seja comprovadamente um mitômano. Como tampouco faz qualquer diferença para a opinião pública brasileira que Michel Temer enrole descaradamente um bando de passadores de pano num patético teatrinho de jornalismo.
Tenho pensado muito neste trecho de “Cidades invisíveis” (1972), do Italo Calvino: “O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: procurar e reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço”.
Construir outro mundo dentro deste e fora das nossas bolhas
Na semana passada, durante um protesto anti-Trump em Nova Iorque, um trumpista vestido com as cores da bandeira americana foi hostilizado pelos manifestantes. Alguém abandonou a turba e resolveu conversar com ele – era uma muçulmana de hijab. Eles abriram espaço.
O diplomata licenciado Antonio Freitas exportou sua biblioteca para um espaço comercial da Galeria Metrópole, em São Paulo, criando um centro cultural, a Tapera Taperá – que também abriga clubes de leitura, sessões de cinema e debates com entrada gratuita. Ele abriu espaço.
Hoje há centenas de escolas e universidades ocupadas pelo Brasil, resistindo contra a MP 746 de reforma do ensino médio e a PEC 55, além de variadas demandas locais. Na semana passada fui a uma dessas ocupações e encontrei um grupo de estudantes mais sério, honesto e coerente do que qualquer representação da esquerda partidária brasileira. Passando longe de repetir vazias palavras de ordem, eles criaram com as ocupações um lugar de diálogo e pensamento. Eles abriram espaço.
Não se trata de normalizar um mundo com Trump, Putin, Netanyahu, Xi Jinping, Temer – e possivelmente Le Pen em alguns meses. Muito pelo contrário, o que precisamos é construir outro mundo dentro deste, através de ações concretas na rua, fora das nossas bolhas e caixinhas de comentário, abrindo espaço através do gesto de conectar-se inclusive – principalmente – com quem discorda de você.
Talvez assim, profundamente acordados como sugere Calvino, possamos começar a enxergar a luz que entra. O resto é desistência.
JÁ ESTÁ ACONTECENDO
Quando o assunto é a ascensão da extrema direita no Brasil, muitos acham que essa é uma preocupação só para anos eleitorais. Mas o projeto de poder bolsonarista nunca dorme.
A grande mídia, o agro, as forças armadas, as megaigrejas e as big techs bilionárias ganharam força nas eleições municipais — e têm uma vantagem enorme para 2026.
Não podemos ficar alheios enquanto somos arrastados para o retrocesso, afogados em fumaça tóxica e privados de direitos básicos. Já passou da hora de agir. Juntos.
A meta ousada do Intercept para 2025 é nada menos que derrotar o golpe em andamento antes que ele conclua sua missão. Para isso, precisamos arrecadar R$ 500 mil até a véspera do Ano Novo.
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