Quem acompanha o noticiário das eleições municipais, centralizado nas promessas, andanças e fotos dos candidatos a prefeito em padarias e pastelarias, pode não se dar conta, mas está prestes a eleger uma verdadeira cidade legislativa em outubro. Composta por mais de 57 mil vereadores desconsiderando assessores e funcionários, essa cidade teria número de “habitantes” superior ao de 90% dos municípios brasileiros – ao custo estimado de R$ 10 bilhões anuais. O valor é praticamente o dobro do orçamento de um município como Campinas, que tem 1,1 milhão de habitantes e é um dos mais ricos do país.
Representante mais próximo do eleitor, o vereador brasileiro é, por ironia, o político mais distante das coberturas jornalísticas. A exceção é quando um deles apresenta algum projeto curioso ou com algum potencial de gerar polêmica (e, consequentemente, manchetes).
Na maioria dos casos, porém, o interesse pelos debates realizados nesses espaços é escasso. Algo que pode ser explicado por um sistema que privilegia e monitora com lupa as ações do Executivo (leia-se governo federal) e delega ao Legislativo, sobretudo nas pequenas cidades, a condição de coadjuvante num país onde o custo parlamentar é um dos mais altos do mundo, segundo a ONU.
Alguns fatores ajudam a entender esse lapso. “Muitos focam no perfil calcado no clientelismo e veem o vereador como uma espécie de despachante pronto a atender à população em obter produtos ou serviços imediatos, ao mesmo tempo em que também mostram uma função propositiva pouco relevante, que fica explícita nos projetos de baixa relevância ou de cunho bizarro”, afirma o cientista social Nelson Ruggiero Jr., estudioso das relações do legislativo municipal.
O especialista observa uma crise de representação parlamentar municipal derivado desse processo. “Há críticas sobre irrelevância das propostas, custos públicos, recessos longos, casos de corrupção ou favorecimento etc. Mas isso não pode ser confundido como reflexo de pouca margem para atuação do vereador, mas, sim, da própria forma como o Legislativo se estrutura, e há muito espaço para melhora, o que já acontece em alguns casos.”
“Existem ferramentas gratuitas que as câmaras podem utilizar para disponibilizar informações, mas muitas Câmaras ainda não adotaram.”
Até hoje apenas um Censo Legislativo foi realizado no país – ainda assim, somente em 2005, com a ajuda (e recursos) do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Os resultados servem como base para entender o caráter amador de algumas dessas Casas. Um desses sintomas é a baixa transparência em relação ao trabalho dos vereadores.
De acordo com o Instituto Legislativo Brasileiro, órgão do Senado responsável pelo Programa Interlegis, que realizou o Censo, a grande extensão territorial, as dificuldades de acesso, o elevado número de municípios (5.670) e o alto custo para contratação de empresa especializada em coleta e análise de dados são algumas das barreiras para a atualização do levantamento.
“Essa dificuldade aumenta quando tratamos de municípios do interior. Existem ferramentas gratuitas que as câmaras podem utilizar para disponibilizar informações, mas muitas ainda não adotaram”, afirma Patrick Cunha Silva, doutorando da Universidade de Washington em St. Louis e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole.
Cerca de 50% das câmaras municipais não têm acesso à internet
Segundo o Interlegis, cerca de 50% das Casas Legislativas municipais não têm sequer site na internet. Mesmo nas capitais, visitar os portais das Câmaras Municipais é circular, com algumas exceções, pelos primórdios da internet. A lista de projetos apresentados tem o acesso dificultado ou está desatualizada nos sites da Câmara de Boa Vista, Macapá, Belém, Palmas, Rio Branco, Cuiabá, Goiânia, Vitória, Fortaleza, Recife, Maceió e João Pessoa – a página desta última, aliás, tinha uma passagem bíblica em destaque no começo da semana (no Brasil, como se sabe, o Estado é laico).
Em Teresina e Aracaju as publicações estão suspensas sob a justificativa de que as Casas obedecem às restrições do período eleitoral – que não impede a divulgação dos atos. Em Belo Horizonte, por exemplo, a Câmara Municipal mantém as atualizações, mas decidiu não dar destaque, em fotos e chamadas, aos vereadores em época de campanha.
Além disso, apenas duas em cada dez casas legislativas (17,6%) do país oferecem gabinetes individuais para o parlamentar trabalhar, aponta o pesquisador Patrick Cunha Silva em “O Poder Legislativo Municipal – Estrutura, Composição e Produção”.
A equipe que acompanhou o trabalho de modernização dos sistemas de transparência nos municípios encontrou realidades díspares. Até recentemente, havia Câmaras Municipais em capitais que escreviam requerimentos aos vereadores à mão. Em compensação, houve casos de municípios pobres que se tornaram polos de investimentos privados por atualizar, de modo transparente, os trabalhos do Legislativo e do Executivo local.
Para o Instituto Legislativo Brasileiro, uma hipótese a ser testada é a de que a ausência de comunicação entre vereadores e eleitores, marcada em grande parte pelo baixo nível de exposição dos trabalhos legislativos nos municípios, influencia a avaliação da sociedade no tocante ao Legislativo como um todo. “Ampliar a transparência e a disseminação de informações sobre os trabalhos nos Legislativos estaduais e municipais tenderia, portanto, a melhorar a imagem institucional das Casas do Congresso.”
Custos e distorções
Estrutura e orçamento, porém, nem sempre são sinônimos de eficiência. Levantamento feito pelo The Intercept Brasil na página da Câmara Municipal de São Paulo, maior e mais rica cidade do país, onde cada um dos 55 vereadores recebe R$ 11,352 mil mensais e emprega até 17 pessoas em seu gabinete mostra que cerca de 60% dos mais de 400 projetos apresentados no primeiro semestre de 2016, ano de eleição, eram relativos a entrega de medalhas e honrarias, como a sugestão de conceder o título de cidadão paulistano ao papa Francisco, nomes de rua ou viadutos, e datas comemorativas (não incluídas as campanhas de conscientização).
Alguns projetos se destacam por uma certa peculiaridade, como os que instituem no calendário do município a Virada Espírita, a “Semana do Sono”, o Dia do Evangelista Universal, do Comunicador Cristão, do Ufólogo, da Família, o Dia do Capitalista Humanista, do Busólogo (amante de ônibus) e o Dia da Vergonha, este a ser celebrado em 17 de abril, data em que a Câmara dos Deputados aceitou o impeachment contra a presidente Dilma Rousseff.
O gasto com salários, auxílios e verbas indenizatórias nas 13 capitais mais pobres do país é 16% superior ao das capitais com os maiores índices de PIB per capita.
No Rio de Janeiro, segundo maior município brasileiro, 75 dos 250 projetos apresentados no mesmo período são referentes a datas festivas e nomes de rua. Há propostas para declarar a cerveja artesanal como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial e para incluir os dias do pão e da maconha medicinal no calendário oficial da cidade. No site da capital fluminense, é possível listar uma média de três moções de congratulação e louvor para cada projeto apresentado (mais de 700, só no primeiro semestre).
Na terceira maior cidade, Salvador, há 40 projetos sobre ruas e datas comemorativas, como o Dia Municipal do Compositor e o Dia Anticorrupção, entre os mais de 250 analisados no primeiro semestre. A lista é composta ainda por mais de 40 decisões relacionadas ao reconhecimento de entidades, sobretudo religiosas, de utilidade pública, o que garante a elas uma série de benefícios fiscais.
Os exemplos são abundantes na atual legislatura. Em Porto Alegre, um vereador chamou a atenção ao sugerir a punição com uso de coleira para assassinos e estupradores de animais.
Em Campinas, a Câmara Municipal ganhou holofotes ao debater a instituição do “Dia do Gol da Alemanha”, uma moção de repúdio a Simone de Beauvoir, escritora feminista morta no século passado, e a coibição do debate de gênero nas escolas – um atropelo, observado também em outras Casas, da função do legislativo municipal sobre a Constituição Federal, que garante a liberdade de ensino ao professor.
“Projetos de datas comemorativas e nomes de rua têm normalmente baixo custo e não afetam a forma como o eleitor vê o exercício do mandato. Durante os quatro anos de mandato, poucos acompanham o trabalho dos vereadores e, quando analisados, os projetos que dão nome de rua, observa-se que vereadores denominam ruas nas regiões em que recebem voto. A leitura das justificativas dos projetos também revela que, muitas vezes, o homenageado é um cidadão do bairro ou a denominação é um pedido de alguma associação de moradores. Talvez seja até possível dizer que nomes de rua aproximam o vereador dos representados”, afirma Cunha Silva.
De acordo com a ONG Transparência Brasil, a verba de gabinete para um único vereador pode chegar a R$ 130,1 mil por mês – caso de São Paulo, onde o benefício é 40% superior ao recebido por um deputado federal.
Isso não evita distorções quando se analisa a renda per capita desses municípios. Segundo o estudo, o gasto com salários, auxílios e verbas indenizatórias nas 13 capitais mais pobres do país é 16% superior ao das capitais com os maiores índices de PIB per capita; enquanto os pobres gastam em média de R$ 25.808 por mês, os ricos gastam R$ 22.332.
Para Cunha Silva, é difícil dizer se o trabalho é realmente bom ou ruim. “Eles trabalham, especialmente em capitais, por causa dos planos diretores e outras políticas urbanas que são de competência exclusiva do município. Porém, em muitas cidades do interior, as sessões ocorrem em menor número. Por vezes, uma a cada semana ou duas semanas.”
No Paraná, ao menos três municípios decidiram reduzir os vencimentos dos vereadores ao equivalente a um salário mínimo. O resultado foi que menos da metade dos parlamentares desses locais tentará um novo mandato a partir de 2017.
“Na minha opinião, erramos ao forçar que todos os municípios tenham o mesmo sistema político”, complementa o pesquisador. “Municípios pequenos talvez não precisem de um sistema presidencialista (prefeito e legislativo). Talvez um conselho bastasse. Acho que isso poderia baratear a representação em municípios pequenos”, avalia o especialista. “Existem muitas verbas suplementares para os parlamentares no Brasil, em todos os níveis. Existe a justificativa de que é para eles não gastarem o dinheiro deles enquanto exercem os mandatos. Mas algumas verbas geram gastos absurdos e vantagens para o parlamentar na época da eleição”, finaliza.
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