Vozes

O que vi sobre IA na COP e por que saio preocupada

Debate crítico sobre papel das big techs na crise climática aparece fora do evento oficial, puxado pela sociedade civil; big techs preferem eventos a portas fechadas


Um projeto para alinhar, usando inteligência artificial, os sinais de tráfego das vias urbanas para diminuir o arranque dos carros e reduzir as emissões de carbono. Um modelo de IA para prever inundações e alagamentos. Uma parceria com uma empresa de reflorestamento para captura de carbono. 

Essas foram as soluções vendidas pela presidente global de sustentabilidade do Google, Kate Brandt, durante um evento de alto nível da COP30 para mostrar como a big tech está comprometida com a resolução da crise climática. A mesma big tech que registrou um aumento de 65% nas suas próprias emissões de carbono nos últimos cinco anos. 

A fala de Brandt não é isolada: na COP30, a tecnologia e a inteligência artificial aparecem como ferramenta para resolução ou mitigação da crise climática – e atendendo ao interesse das big techs

Porém, a  participação das empresas de tecnologia no colapso do planeta não é trivial: estima-se que hoje esse setor responde por entre 1,5% e 4% das emissões totais globais de gases de efeito estufa. São estas mesmas empresas que têm, com suas tecnologias de ponta, ajudado a indústria petrolífera a produzir mais no momento em que o caminho seria o de zerar a produção. 

Moratória dos data centers 

Ao redor do planeta, data centers destas empresas têm disputado água e energia com comunidades que já sofrem com a falta desses recursos. E as perspectivas não são boas. À medida que o desenvolvimento da inteligência artificial avança, a pegada ambiental dessa indústria tende a disparar. 

Apesar disso, era possível contar em uma só mão os eventos na Zona Azul da COP30 que pautassem criticamente o tema. Uma coletiva de imprensa com representantes da sociedade civil brasileira e estrangeira  sobre as “ameaças globais da IA à justiça climática e ambiental” ficou esvaziada.

Durante essa coletiva, Meena Raman, diretora de programas da Third World Network, uma rede sem fins lucrativos de organizações e indivíduos que atuam em pautas de desenvolvimento, defendeu que é hora de uma moratória sobre o desenvolvimento de data centers. 

Protesto na Marcha Pelo Clima cita data centers de IA. Foto: Roberta Freire.

Nova fronteira de expansão para combustíveis fósseis 

Por outro lado, quem buscou painéis, mesas e debates que falassem sobre IA como solução encontrou dezenas. “IA para agricultura”, “Inovação movida por IA para o setor público: acelerando a transição energética carbono zero”, “Trabalhando juntos para avançar IA para natureza”, foram alguns dos eventos na programação oficial da Zona Azul. 

Segundo Jean Su, diretora de Justiça Energética no Center for Biological Diversity, uma organização sem fins lucrativos sediada nos Estados Unidos, os processos da UNFCCC e da COP tendem a ofuscar o que está contribuindo mais para a emergência climática. Neste momento, disse ela, data centers de IA são a nova fronteira de expansão para combustíveis fósseis. 

“Eles estão tentando usar os fins para justificar os meios. Governos estão dizendo ‘ah, tudo bem se usarmos combustíveis fósseis agora, a IA vai eventualmente nos ajudar a resolver a emergência climática”, disse Su. 

O que se viu dentro da Zona Azul contrasta com a programação paralela organizada pela sociedade civil e por ativistas. Fora da COP, diversas mesas e painéis trataram dos impactos do desenvolvimento de inteligência artificial sobre os territórios brasileiros. 

Na Cúpula dos Povos, uma atividade promovida pela sociedade civil falou sobre IA, clima e mineração. Na Marcha Global pelo Clima, que reuniu 50 mil pessoas no sábado, ativistas carregaram uma faixa com os dizeres: “água e energia para o povo, não para data centers”. 

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A portas fechadas, a conversa é outra

Mas há também uma distância entre o que se discute nos estandes na Zona Azul e o que acontece dentro das salas de negociação, onde estão sendo construídos os textos que sairão como compromissos dessa COP. 

O tema da tecnologia ganhou um espaço mais central nas COPs só recentemente, em Dubai, há dois anos. “No balanço global teve já uma primeira decisão ali indicando que a inteligência artificial, não está com essas palavras, mas indicando que é uma faca de dois gumes”, disse ao Intercept Pedro Ivo Ferraz da Silva, diplomata do Itamaraty e membro do Comitê Executivo e Tecnologia da COP30.

Segundo ele, reconheceu-se a aplicação da IA para apoiar a adaptação e a mitigação, mas também sua sua pegada ambiental. “A própria negociação reconheceu os riscos associados à inteligência artificial. Isso está muito bem estabelecido”, disse o diplomata. 

Em 2024, durante a COP no Azerbaijão, países assinaram um primeiro documento, a Declaração sobre a Ação Digital Verde, em que apontam tanto o papel da tecnologia em prol da ação climática, quanto a necessidade de mitigar seus impactos, como zerar as emissões de gases de efeito estufa e reduzir o uso de recursos.

“Não necessariamente a discussão que está tendo ali nos estandes, está entrando [nas negociações]. A gente precisa sempre de pessoas monitorando isso. Por isso que parte da sociedade civil fica monitorando esses debates, os relatórios ao fim do dia, [para] entender o que mudou, qual país que travou nessa negociação, quais são os países que estão querendo avançar ou já avançaram”, explicou Evelyn Gomes, diretora-executiva do LabHacker, o Laboratório Brasileiro de Cultura Digital. 

Nas mesas de negociações, a novidade é o tema da inteligência artificial. “Entende-se a IA como aceleradora de criar inovações, mas também veio o desafio do impacto dela nos territórios, desafio da água e energia”, explicou Gomes, que teve acesso às salas de negociação como observadora.

“O que está se discutindo é que ela é necessária para o desenvolvimento da tecnologia e tentando discutir a forma. Mas o que eu sinto é que isso ainda está sendo tateado, enquanto nós estamos aqui na sociedade civil discutindo o mesmo tema de maneira mais avançada”, disse Gomes.

Balcão de negócios

Na noite do dia 11, enquanto indígenas e ativistas forçavam sua entrada na Zona Azul da COP30 em protesto contra a falta de representação nas mesas de negociação do evento, um jantar de negócios transcorria calmamente longe dali.

Promovido pela Nvidia, a maior fabricante de chips de IA do mundo, avaliada em US$5 trilhões, em parceria com a Deloitte, multinacional de consultoria e auditoria para empresas, o jantar só para convidados tratou de “inteligência artificial e sistemas de energia”. 

Energia e IA são duas pautas convergentes. Isso porque o grande gargalo para o desenvolvimento de IA mundo afora é a falta de energia, e especialmente, a falta de energias renováveis. O Brasil, com sua disponibilidade de fontes de energia limpas e renováveis, se destaca nesse sentido.

Tirando um cenário instagramável do TikTok em um estande na Zona Verde, quem procurou pelas big techs na COP não encontrou. Mas isso não quer dizer que elas não estivessem por ali. 

Pelo menos 35 pessoas foram registradas para participar da COP ligadas a alguma grande empresa de tecnologia, segundo a lista de participantes divulgada pela UNFCCC. Google, Microsoft, TikTok, AliBaba, Nvidia levaram representantes – desde executivos com cargos altos a criadores de conteúdo. 

Ainda que não estivessem presentes em painéis na Zona Azul, representantes de big techs participaram de eventos privados que ocorreram em Belém ao longo da COP. O Intercept mapeou pelo menos seis eventos privados.

No dia 11, o TikTok promoveu uma conversa  na Goals House, que tem como parceiras gigantes da indústria tecnológica, com o tema  “poder das plataformas digitais para amplificar vozes climáticas e mudar percepções”. O evento  teve a participação de criadores de conteúdo de diferentes países com a moderação de Eduardo Lorenzi, diretor de operações do TikTok no Brasil.

Essa é a mesma empresa que, conforme revelado pelo Intercept Brasil em maio, está planejando construir um data center em um município que sofre historicamente com seca e estiagens e sobre um território que é reivindicado pelos indígenas Anacé. 

Na casa Ted Countdown House, o Google realizou um jantar com Kate Brandt, a presidente global de sustentabilidade sob o  tema “IA para Natureza”. Na manhã seguinte, a programação na casa começou com um café da manhã com Melanie Nakagawa, que ocupa o mesmo cargo na Microsoft. O assunto? “Mercados de sustentabilidade: O papel das empresas na construção de uma remoção de carbono com integridade em grande escala”.

Para Jean Su, do Center for Biological Diversity, a COP é para as big techs, assim como para a indústria dos combustíveis fósseis, uma grande conferência de negócios. 

“Eles estão neste momento negociando acordos diretamente com países para instalar seus data centers nesses países e acessar sua energia barata e sua água”, disse Su. “É um projeto colonial do lado deles e eles estão usando a ONU para mostrar que é para o benefício público”.

“Uma das coisas mais assustadoras sobre as big tech é que elas são ainda mais poderosas que a indústria dos combustíveis fósseis”, concluiu. 

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