O governador de São Paulo, Tarcísio de FReitas, do Republicanos, pode parecer hoje um candidato cada vez menos promissor e incapaz de derrotar o presidente Lula numa disputa nacional. Ainda assim, segue sendo o nome mais competitivo da extrema direita brasileira.
Mesmo fustigado pela ala mais radical do bolsonarismo, inclusive pelos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro, ele permanece fiel ao mesmo repertório ideológico, apenas dito em outro tom.
No seu governo, a agenda ultraliberal que se apresenta como modernização convive não apenas com a brutal violência policial, mas também com pautas que flertam com o negacionismo bolsonarista.
É nesse ambiente que nasceu o acordo do governo Tarcísio com o grupo ligado à farsa do ET Bilu. O tema foi abordado pela imprensa nas últimas semanas. Mas por trás do caso, há uma realidade perigosa. Eu sei que não parece, mas o assunto é sério. Eu juro. Vamos aos fatos.
Muito além do ET Bilu
É bem possível que você tenha lido que, em 2024, a Secretaria de Turismo do governo de Tarcísio de Freitas assinou um protocolo de intenções com a Dakila Pesquisas, organização liderada pelo empresário Urandir Fernandes de Oliveira – o criador do inesquecível ET Bilu.
O acordo, revelado pela Folha de S.Paulo no início do mês, previa cooperação para supostos estudos sobre o Caminho de Peabiru, uma antiga rota indígena que ligava o Oceano Atlântico ao Pacífico.
A articulação para assinatura foi conduzida pelo secretário estadual de Turismo de São Paulo, Roberto de Lucena, pastor evangélico filiado ao Republicanos, o mesmo partido do governador, e amigo de longa data do ex-presidente Jair Bolsonaro, do PL.

Meses depois, o convênio entre a Dakila e o governo estadual foi encerrado em função da falta de entrega de resultados técnicos, mas produziu o efeito central buscado pela organização: legitimidade estatal.
Ter sido oficialmente reconhecida como parceira de um governo estadual, afinal, é credencial para sustentar a imagem de instituto científico, usada em outras frentes de atuação.
Justiça seja feita: não é só o governo Tarcísio que abriu portas para a Dakila. Em maio e setembro deste ano, a organização realizou eventos no mais prestigiado auditório do Congresso Nacional, o Nereu Ramos. Procurei a Câmara para entender quem autorizou a realização dos eventos, mas não houve resposta até a publicação da reportagem.
Segundo historiadores ouvidos pelo Intercept, essa relação com governos, feita por meio de parcerias, convênios e eventos com a presença de representantes do estado, é utilizada pela Dakila para expandir atividades supostamente científicas e empresariais.
A verdade é que a Dakila é tratada como mera curiosidade folclórica, uma seita excêntrica que viralizou com o ET Bilu. Mas esse enquadramento esconde o que o grupo efetivamente se tornou.
Ao longo de mais de duas décadas, a organização desenvolveu também uma frente empresarial formal, composta por companhias registradas em setores diversos, associadas a integrantes próximos e até familiares de Urandir Fernandes de Oliveira.
Entre elas, estão a AgroDakila, na área do agronegócio; a 067 Vinhos, que atua no comércio de bebidas; e a Brazilian Kimberlite Clay, que trabalha com extração e comercialização de argila. Em paralelo, a Kion Cosmetics utiliza o mesmo insumo na linha de cosméticos que produz.
Todas essas empresas têm constituição regular e operam no mercado, compondo o que o próprio grupo descreve como um “ecossistema” voltado à auto sustentação de suas atividades.
Também faz parte dessa estrutura a BDM Dourado Digital Gestão de Ativos Ltda, uma espécie de banco digital apresentado como ferramenta de “educação econômica” e integração financeira interna do grupo.

Segundo um documento obtido pelo Intercept Brasil, a tecnologia base utilizada pela BDM foi alvo de disputa judicial e seria derivada de um sistema já existente no mercado internacional de blockchain, e não de desenvolvimento próprio, como alegado pela Dakila.
Pesquisadores que acompanham a organização entendem essa diversificação empresarial como uma segunda camada do projeto: a crença e o conteúdo místico no topo, e uma operação comercial organizada na base.
Em busca de Ratanabá
Desde 2020, a Dakila vem tentando obter licenças arqueológicas junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, para atuar em áreas de interesse ambiental e cultural na Amazônia.
O grupo apresentou, em 2021, pedidos baseados diretamente na narrativa de “Ratanabá” e da suposta civilização “Muril”, solicitando autorização para iniciar pesquisas no Forte Príncipe da Beira, em Rondônia, e depois expandir para outras regiões.
Em resposta, o Iphan solicitou documentos básicos (coordenadas, metodologia, qualificação técnica e comprovação da hipótese) e não concedeu a licença.
Em 2023, já sob nova gestão federal, a Dakila reformulou o pedido: desta vez, com o título “Arqueologia da paisagem como ferramenta para conservação”, localizado na Aldeia Mayrowi, em Apiacás, no Mato Grosso, em território associado à Terra Indígena Kayabi.
O parecer técnico do Iphan apontou carência de arqueólogo com a titulação exigida, ausência de vínculo acadêmico reconhecido e falta de comprovação de consentimento livre, prévio e informado das comunidades locais. O pedido foi novamente negado e arquivado.
Mesmo sem sucesso, houve apoio político à iniciativa. Um dos ofícios anexados ao processo administrativo, em março de 2024, partiu do deputado federal Ricardo Barros, do PP do Paraná, pedindo “atenção” especial do Iphan ao pleito.
Curiosidade: já neste ano, em maio, Barros foi eleito presidente da Comissão de Ciência (sim, de ciência), Tecnologia e Inovação da Câmara dos Deputados. Questionei o gabinete do deputado sobre o apoio à Dakila, mas não houve retorno.
No ano passado, a Sociedade de Arqueologia Brasileira aprovou uma Moção de Repúdio às iniciativas da Dakila, registrando o uso recorrente de eventos científicos como estratégia de busca indireta por legitimidade.
Procurei a Dakila fazendo questionamentos sobre cada uma das informações apresentadas na reportagem. Não houve resposta.
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