Falta de regras faz data center do TikTok no Ceará ter licença ambiental igual a parque de vaquejada

Falta de regras faz data center do TikTok no Ceará ter licença ambiental igual a parque de vaquejada

Projeto que gastará por ano energia equivalente a 2,2 milhões de brasileiros foi enquadrado como “construção civil”. Motivo é que, sem lei nacional, cada estado decide como fazer o licenciamento.

Falta de regras faz data center do TikTok no Ceará ter licença ambiental igual a parque de vaquejada

A boiada da IA

Parte 9

O aumento da demanda por inteligência artificial tornou o Brasil especialmente interessante para fornecer infraestrutura para big techs. Vale a pena? Nossa série investiga o impacto da indústria de data centers no Brasil.


A falta de regras específicas para o licenciamento ambiental de data centers – mega infraestruturas de armazenamento, processamento e treinamento de dados – tem levado estados a liberarem projetos do tipo como se fossem atividades menos danosas ao meio ambiente. No Ceará, por exemplo, o data center do TikTok foi enquadrado no grupo de construção civil, onde também aparecem estruturas como kartódromos e parques de vaquejada.  

Isso significa que o data center da big tech, que prevê consumir em um dia a energia equivalente a 2,2 milhões de brasileiros, e um parque de vaquejada, com propósitos, dimensões e impactos bastante diferentes, estão sujeitos às mesmas regras e critérios de licenciamento ambiental.

“É a lógica de uma lacuna conveniente”, disse ao Intercept Brasil Rárisson Sampaio, assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc, e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB do Ceará. 

No caso do projeto do TikTok, a classificação foi de baixo impacto ambiental. Isso levou à dispensa de um estudo mais aprofundado dos efeitos que o data center terá no meio ambiente. 

Documento cita potencial de impacto ambiental baixo para o projeto, que consumirá, por ano, energia equivalente a 2,2 milhões de brasileiros (Foto: Reprodução)

Para obter a licença prévia do estado do Ceará, a Casa dos Ventos, empresa que assina oficialmente o projeto, só teve que apresentar o relatório ambiental simplificado, o RAS, ao qual tivemos acesso, e atender a algumas condicionantes propostas pela Superintendência de Meio Ambiente do Ceará, a Semace. 

Uma das condições listadas é a recomendação de que “as intervenções que possam causar transtorno à população vizinha sejam comunicadas às comunidades com antecedência, no sentido de mitigar perturbações aos moradores do entorno”. Em outra, a Semace informa que a empresa deve “realizar ações com o objetivo de minimizar os impactos da instalação/operação do empreendimento”, mas não especifica quais. Por fim, o órgão lista documentos que a empresa deve apresentar para pedir a licença de instalação, a próxima etapa do processo de licenciamento ambiental. 

A Semace informou ao Intercept que, em 12 de maio, a Casa dos Ventos deu entrada no pedido de licença de instalação, que é necessário para iniciar as obras do empreendimento. O processo ainda está sob análise técnica pela superintendência. 

Projeto do data center foi enquadrado no grupo de “construção civil”, onde também aparecem estruturas como kartódromos e parques de vaquejada (Foto: Reprodução) 

Considerar apenas porte e atividade como variáveis é insuficiente para determinar o grau de impacto de um empreendimento, analisa Severino Agra Filho, professor do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal da Bahia. 

Agra Filho, que ocupou durante anos um assento no Conselho Estadual de Meio Ambiente da Bahia, afirma que é necessário pensar o contexto do local de instalação de cada empreendimento para determinar seu potencial impacto real. Por exemplo, um data center que venha a ser instalado em uma cidade com histórico de seca terá um impacto diferente do que aquele instalado em locais que não sofrem com emergências hídricas. 

O Brasil não tem hoje uma lei geral de licenciamento ambiental – o que pode mudar em breve caso o projeto de lei 2159/2021, o chamado PL da Devastação, que foi aprovado na Câmara há poucos dias, seja sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Mas há consenso entre os especialistas ouvidos pelo Intercept que afrouxar regras de licenciamento poderá impactar diretamente nos projetos de data centers no país.

O que já existem são resoluções gerais do Conselho Nacional do Meio Ambiente, o Conama, ligado ao Ministério do Meio Ambiente, que estabelecem regras que todos os estados devem seguir em processos de licenciamento. Mas essas resoluções não têm o peso de uma lei e são muito mais fáceis de serem alteradas, explica Sampaio.

E tem outro agravante: ainda que existam resoluções gerais do Conama, cada estado tem autonomia para definir os ritos e processos administrativos do licenciamento ambiental, desde que isso não entre em conflito com as regras do Conama. Só que, no caso de projetos de data center, não existe referência, resolução nem lei.

Depois que o Intercept revelou que o Ministério do Meio Ambiente não participou da elaboração da política nacional de data centers, organizações de sociedade civil, como o Instituto de Defesa de Consumidores, o Idec, o Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife, o IP.rec, e o Laboratório de Políticas Públicas e Internet, o Lapin, enviaram em maio um ofício ao Conama pedindo que o conselho tomasse “providências urgentes quanto à ausência de diretrizes socioambientais e climáticas específicas relacionadas à instalação e operação de data centers” no Brasil. Não houve resposta até hoje. 


Você trabalha em um órgão de licenciamento ambiental que está acompanhando ou avaliando um projeto de data center? Fale conosco de maneira segura por e-mail ([email protected]) ou através do Signal (@laisfm.02).


Nós voltamos a questionar o MMA sobre a atuação do Conama. A resposta foi que hoje não há qualquer regulamentação específica em tramitação no conselho sobre data centers e que esses empreendimentos estão submetidos às resoluções gerais vigentes sobre licenciamento ambiental. 

A ausência de regras gerais do Conama, combinada com a falta de uma lei que regulamente a instalação de data centers no Brasil, tem dado maior autonomia aos estados para definir como licenciar esses megaempreendimentos – o que resulta em um tipo de “corrida” para facilitar licenciamentos a fim de atrair esses projetos. “A tendência quando você fala de atrair investimentos é qual? A lógica empresarial é flexibilizar”, pontua Sampaio.

Segundo o advogado, uma resolução geral do Conama é importante porque ela funcionaria como uma espécie de “piso”, com regras mínimas às quais os estados podem apenas agregar novas diretrizes. Sem essa base, cada estado pode definir os critérios de licenciamento como quiser.

“É mais interessante você ter uma resolução específica porque você pelo menos tem a oportunidade – não vou dizer que é do interesse dos governos fazerem isso – de olhar para questões específicas dos empreendimentos e definir regramentos que atendam a cada um de modo a proteger valores ambientais”, ressalta o advogado. 

LEIA TAMBÉM:

No Rio Grande do Sul, onde está prevista a instalação de um data center em Eldorado do Sul, a cidade que mais alagou durante as enchentes de maio de 2024, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental, a Fepam, que cuida de licenciamentos, aprovou uma resolução em maio deste ano que cria o ramo de atividade específico para data centers. 

A resolução estabelece que data centers serão enquadrados como médio impacto e definiu que projetos de até 20 MW de capacidade serão licenciados pelos municípios. Para capacidades superiores, o licenciamento fica sob responsabilidade do estado. 

Já em nível nacional, a deputada federal Duda Salabert, do PDT de Minas Gerais, apresentou em maio um projeto de lei que propõe criar a Política Nacional de Eficiência Energética e Sustentabilidade Socioambiental para Data Centers. A proposta traz uma série de diretrizes e regras para empresas do setor, como, por exemplo, deveres de transparência sobre consumo hídrico e energético. O texto ainda aguarda avaliação da Comissão de Ciência, Tecnologia e Inovação da Câmara. 

Regras estaduais são mais sensíveis a pressões políticas

Órgãos ambientais estaduais, como é o caso da Superintendência de Meio Ambiente do Ceará, a Semace, são autarquias. Em teoria, essa separação garante um grau de autonomia aos órgãos para que eles tomem decisões sem a pressão da ala política dos governos estaduais – frequentemente partes interessadas no avanço de empreendimentos.

Mas, na prática, a situação é outra. “O que vemos é que há uma pressão muito grande e um alinhamento entre governo, pela Secretaria do Meio Ambiente, e a autarquia ambiental. E isso a gente vê muito no Ceará”, alerta Sampaio.

O Conselho Estadual do Meio Ambiente do Ceará, o Coema, é atualmente presidido pela Secretaria do Meio Ambiente e Mudança do Clima cearense, a Sema. As titulares da Sema no conselho, por exemplo, foram indicadas pelo governador do estado, o petista Elmano de Freitas.  

O direito de voto é distribuído entre os membros do Coema, dentre eles a OAB, da qual Sampaio faz parte, universidades, Ministério Público e representantes do setor empresarial. Mas, em geral, são poucos os que votam contra projetos, de acordo com o advogado.

“Na nossa vivência enquanto Comissão de Direito Ambiental, temos observado que muitos projetos que são estratégicos para o governo têm passado de uma forma muito acelerada e superficial”, ressalta. 

LEIA TAMBÉM:

Agra Filho, da UFBA, sugere duas mudanças para tentar blindar os órgãos estaduais de pressões empresariais. A primeira é alterar a composição dos conselhos, aumentando a participação da sociedade civil. Em sua experiência, governo e empresas tendem a votar de maneira semelhante.

A segunda mudança é dar mais poder para departamentos técnicos dentro dos conselhos, onde a discussão tende a ser mais objetiva e racional. “As câmaras técnicas têm que exaurir a possibilidade de você decidir, e as questões aprovadas por consenso nas câmaras técnicas nem precisariam ir ao plenário. Isso obriga o empresário a entrar no acordo na câmara técnica”, disse Agra Filho.

Para Sampaio, em um cenário ideal, haveria uma política para data centers com princípios estabelecidos de proteção ambiental, e além disso, legislações específicas em nível estadual. 

No Ceará, há uma proposta em andamento na Assembleia Legislativa, de autoria do deputado Bruno Pedrosa, do PT. O texto, que ainda tramita em uma comissão do parlamento, propõe critérios que devem ser atendidos pelas empresas de data center, como uso de fontes renováveis e de sistemas de reuso de água, além de uma série de obrigações de transparência, como fornecimento recorrente de dados de uso de água e energia, além de geração de empregos. 

O projeto ainda prevê a criação de um Comitê Estadual de Acompanhamento de Data Centers, com participação do governo, acadêmicos, setor empresarial, sociedade civil e comunidades afetadas. 

PL da Devastação afrouxa ainda mais as regras 

O  PL da Devastação, recém-aprovado pela Câmara, pode aumentar ainda mais o poder dos estados para flexibilizar normas e passar a boiada dos data centers sem avaliar e prevenir impactos ambientais. 

“Não vai piorar, vai acabar, não vai existir mais licenciamento, vai ser uma coisa meramente cartorial, o que já é um pouco, porque várias empresas e atividades hoje estariam dispensadas da licença formalmente”, disse Agra Filho.

Uma das mudanças da proposta mais criticada por ambientalistas é a institucionalização da chamada LAC, uma espécie de licença auto-declaratória, e da LAE, uma licença ambiental especial. Na LAC, “em vez de ter um procedimento ativo de verificação das lacunas ambientais do projeto, o próprio empreendedor declara que está de acordo com a legislação”.

‘Não vai piorar, vai acabar [o licenciamento]’

Segundo Sampaio, a LAC já é presente em muitos estados, mas agora pode ser institucionalizada em nível nacional. Já a LAE é uma categoria especial que pode ser usada justamente para acelerar a liberação de licença para empreendimentos estratégicos.

Um exemplo de projeto que entra nessa categoria é a proposta da Petrobras para explorar petróleo na Foz do Amazonas. “Se essa LAE já existisse, esse imbróglio já teria acabado, porque você teria um procedimento especial, um rito acelerado, flexibilizado com várias concessões que são feitas para poder avançar com empreendimentos que o poder público classifique como estratégicos”, explica Sampaio. 

Na avaliação do advogado, data centers poderiam entrar nessa categoria também. “Com toda articulação política que a gente está vendo no entorno desses projetos, eles certamente seriam objeto desse tipo de licença também. Uma licença estratégica para atrair desenvolvimento. São coisas preocupantes”, destaca.

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

Enquanto Nikolas, Gayers, Michelles e Damares ensaiam seus discursos, quem realmente move o jogo político atua nas sombras: bilionários, ruralistas e líderes religiosos que usam a fé como moeda de troca para retomar ao poder em 2026.

Essas articulações não ganham manchete na grande mídia. Mas o Intercept está lá, expondo as alianças entre religião, dinheiro e autoritarismo — com coragem, independência e provas.

É por isso que sofremos processos da Universal e ataques da extrema direita.
E é por isso que não podemos parar.

Nosso jornalismo é sustentado por quem acredita que informação é poder.
Se o Intercept não abrir as cortinas, quem irá? É hora de #ApoiarEAgir para frear o avanço da extrema direita.

Apoie o Intercept Hoje

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar