A nova operação da Polícia Federal e do Ministério Público do Rio de Janeiro para desvendar os mandantes do assassinato de Marielle Franco, ocorrido em março de 2018, esbarrou em questões diplomáticas. Documentos obtidos pelo Intercept mostram que o governo alemão teve absoluto descaso com a intenção da PF em obter apoio da empresa alemã Heckler & Koch, fabricante da submetralhadora MP5, utilizada no assassinato da vereadora e do motorista Anderson Gomes.
A tentativa de aproximação brasileira começou em 31 de março deste ano e foi encerrada pela própria PF em 22 de junho, após empecilhos colocados pela Alemanha. O objetivo dos brasileiros era que um perito ligado à empresa H&K participasse dos trabalhos de investigação do caso.
Depois de fazer um primeiro contato com a Embaixada Alemã no Brasil por telefone, o delegado Guilherme Catramby formalizou no dia 31 de março, por meio de uma carta, a intenção da PF em ter a colaboração dos alemães para ajudar a elucidar o caso. No dia 4 de abril, veio a resposta de Uwe Recht, adido alemão no país. “Devido ao direito internacional, especialistas da H&K não podem ser diretamente convidados pela autoridade investigativa para irem ao Brasil a fim de examinar os vestígios de munição e estojos”, respondeu.
O representante da embaixada, então, orientou a PF a formalizar um pedido de assistência jurídica ao governo alemão – segundo ele, um acordo da ONU contra o crime organizado transnacional daria legalidade ao desejo da PF em obter apoio. “Nesse contexto, recomendo que seja apresentado, o mais breve possível, um pedido de assistência jurídica por meio dos canais apropriados”, disse Recht.
Andando em círculos
Dias depois, na tarde de 6 de abril, o setor de inteligência da PF já havia formulado um pedido nos moldes sugeridos. O documento de pouco mais de duas páginas, basicamente, formaliza novamente “um especialista/perito da empresa H&K para participar dos trabalhos periciais a serem realizados nos vestígios encontrados no local do crime”.
A resposta veio apenas dois meses e oito dias depois, em 14 de junho de 2023. Desta vez, Uwe Recht afirmou que a Secretaria Nacional de Justiça alemã o orientou a formalizar o pedido de cooperação junto ao Poder Judiciário do país. Dias depois, segundo o adido, ele teria sido orientado pelas autoridades alemãs, desta vez para que solicitasse à PF um pedido de cooperação jurídica complementar, no qual descrevesse mais detalhadamente os fatos do caso e abordasse também uma série de outros pontos.
Uma das questões trazidas por Recht indagava a PF se a arma do crime era, de fato, uma arma H&K, e quais seriam as evidências nesse sentido. A dúvida levantada pelo governo alemão, porém, contraria a notícia publicada pelo canal Deutsche Welle em agosto de 2020, dando conta de que durante a reunião anual de acionistas da Heckler & Koch, ocorrida na em 27 de agosto de 2020, a empresa confirmou que não exportará mais armamento para o Brasil, citando justamente a “agitação política” e a repercussão do caso Marielle como justificativa para a decisão.
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Na mensagem em que encerrou as tratativas visando o acordo de cooperação internacional, em 22 de junho, o delegado Guilherme Catramby respondeu a esse ponto de forma dura: “As autoridades alemãs de pronto, ao menor indício de que a arma do crime fosse uma H&K MP5, cessaram a venda de armamento para o Brasil, o que refletiu diretamente nesta Polícia Federal, por exemplo, e, neste momento, impõem empecilhos dessa ordem para o trâmite regular do presente procedimento”.
Outras indagações feitas pelo governo alemão também indignaram Catramby e fizeram a tentativa de acordo ir por água abaixo. Em uma delas, a Embaixada Alemã encaminhou o seguinte questionamento às autoridades brasileiras: “Também seria útil se as autoridades do Brasil incluíssem uma declaração sobre o reembolso dos custos normalmente incorridos (por exemplo, perda de serviço, custos de viagem, etc.)”.
Em outra, questiona por que a abordagem direta à H&K não teve sucesso – sendo que o próprio adido alemão disse que o “direito internacional” não permitiria a abordagem direta da PF à empresa.
Catramby mostrou revolta com a pergunta: “A abordagem direta junto à H&K se mostrou inviabilizada pelo fato do mesmo subscritor do ofício em questão, Sr. Uwe Recht, em e-mail datado de 04 de abril de 2023, ter indicado que ‘não é possível que os especialistas da H&K sejam convidados diretamente ao Brasil pelo órgão de investigação para avaliar restos de munição e invólucros’. Assim, confessa esta autoridade policial estar surpresa com tal questionamento”.
No último contato antes de encerrar a tentativa de acordo, o delegado da PF usou palavras como “ausência de interesse ativo”e “empecilhos criados pelas próprias autoridades” para classificar o tratamento dado à Embaixada alemã ao caso.
O Intercept procurou, desde a manhã de quarta-feira, as assessorias de imprensa da Polícia Federal e da Embaixada da Alemanha. Foram feitos contatos por telefone e por e-mail. Nos dois casos, não houve nem sequer menção ao recebimento dos questionamentos feitos pela reportagem. O espaço segue aberto para manifestações das partes citadas.
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