Foto: Ralph O. Hotz. April 1906/US Geological Survey

Facebook e Google investem contra fake news. Mas são uma das causas do problema.

Gigantes da internet maximizam seus lucros com um ambiente propício para a propagação de notícias falsas. Agora terceirizam a responsabilidade.

Foto: Ralph O. Hotz. April 1906/US Geological Survey

Nesta quinta-feira, um consórcio de 24 veículos de imprensa anunciou o projeto Comprova, uma ferramenta que fará a checagem de notícias apontadas como falsas de forma colaborativa. A ideia é que, juntando diferentes veículos de imprensa, a verificação seja mais confiável – pelo menos três membros do consórcio precisarão checar as informações para que ela seja publicada.

A iniciativa, anunciada no Congresso da Abraji e financiada pelo Google e pelo Facebook – assim como o próprio evento -, se juntou a outras, bancadas pelas mesmas empresas, para lutar contra aquilo que, de repente, se tornou o grande problema (e, em parte, uma grande solução em termos de financiamento) no panorama do acesso à informação. Todo mundo quer “combater” ~fake news, o grande mal contemporâneo.

Nada contra essas iniciativas, inclusive tenho muitos amigos que são e até ajudei a desenhar uma delas. Acho importante que jornalistas se debrucem nos detalhes e fiscalizem discursos políticos, propagandas e outras notícias. Importante, não; fundamental. A desinformação é um problema real. A falta de confiança na mídia também. Esforços coletivos de construção de credibilidade e reputação são necessários, mas são paliativos para um problema muito mais estrutural e que tem raízes muito profundas. E foi agravado, em grande parte, pelo mesmo motivo pelo qual Google e Facebook se tornaram gigantes lucrativas.

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As megaempresas do Vale do Silício podem investir o quanto quiserem em iniciativas de checagem de fatos – é uma boa maneira de aliviar a consciência –, mas nada muda o fato de que o coração de seus modelos de negócio é que cria um ambiente fértil para a desinformação.

Economia da atenção

Notícias falsas existem desde que o jornalismo nasceu. Em 1906, jornais de São Francisco adulteraram fotos e informações sobre o terremoto que destruiu a cidade para garantir o pagamento de seguros e a volta dos investidores. No Brasil há um termo antigo para isso: a velha e boa barrigada (oi, Noblat!). E, num tempo em que 72% dos brasileiros se informam por redes sociais – e confiam mais nelas do que na mídia impressa –, veículos jornalísticos precisam se virar para conseguir atenção em um modelo de distribuição marcado pela falta de transparência e pela concorrência para alavancar audiência.

Primeiro, e mais importante: o que aparece nas timelines (e o que informa as pessoas) não é exatamente governado por credibilidade ou reputação – mas, sim, por algoritmos desenhados para maximizar o período de atenção das pessoas. Quanto mais interação, melhor – mais potencial publicitário. É por isso que o Facebook mudou várias vezes seus algoritmos para privilegiar conteúdo postado pelos amigos e derrubou o alcance da mídia. Informação jornalística não prende a atenção. Memes, manchetes apelativas, brigas e fotos dos filhos dos amigos, sim.

É a “economia da atenção”, que cria mecanismos sofisticados de vigilância e conteúdo moldado para nos viciar nas timelines, e garante que a publicidade nas redes sociais continue bastante eficiente e lucrativa, enquanto a dos veículos de mídia se esvai. Na prática, essa lógica fez com que a mídia precisasse se adaptar – e readaptar quantas vezes o algoritmo mudasse sem aviso prévio – e precisasse buscar estratégias duvidosas para alavancar audiência, como manchetes sensacionalistas, caça-cliques ou ambíguas. Coisas que poderiam ser perfeitamente encaixadas na ampla categoria de “fake news”. Se a mídia precisa de financiamento e se o modelo pede cliques, emplaca o que for mais clicável. Simples assim.

As redes sociais ainda têm uma postura pouco transparente com relação à maneira como esses algoritmos funcionam – a chamada governança algorítmica – e, até o momento, nada sinaliza que essa lógica vai mudar para privilegiar, de forma positiva, quem tem feito bom jornalismo (de uma forma geral, não apenas das iniciativas próximas e financiadas por eles). Até porque jornalistas, por princípio, deveriam fazer ~fact checking~ todos os dias, independente se trabalham em uma agência dedicada a isso ou não.

O jornalismo está em crise e precisa de financiamento. Que bom que esse dinheiro está entrando. Mas essas iniciativas colocam os jornalistas para resolverem um problema que a mídia – com todos os seus problemas – não criou sozinha. Pelo menos não na escala suficiente para estremecer uma eleição, o grande temor da atualidade. Falando em “censura”, esquerda e direita têm alternado em acusações contra agências de checagem, e quem está no front, recebendo ataques, são os jornalistas. Pouco se fala da responsabilidade das gigantes de internet, as responsáveis por criar o grande ecossistema de consumo de informação, e elas seguem blindadas pinçando iniciativas aqui e ali para financiar – enquanto a raiz do problema segue intocável.

Me causa incômodo que, de repente, iniciativas capitaneadas pelas gigantes da internet sejam as porta-vozes da verdade e da credibilidade. Além dos conceitos de “verdade” e “isenção” poderem ser bastante questionados, fala-se do “problema das fake news” como se ele fosse algo externo às redes sociais e a lógica de atenção da internet criada pelas mesmas empresas que agora terceirizam a responsabilidade para resolvê-lo. Não são. São intrínsecos.

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