SÃO PAULO, SP, 12.03.2014: ATO/TRABALHO ESCRAVO/SP - O Sindicato dos Comerciários de SP realiza ato em frente à loja da Schutz contra o trabalho escravo na rua Oscar Freire (Jardins). Segundo a fiscalização do Ministerio do Trabalho, 17 trabalhadores peruanos foram encontrados em situação análoga a de escravidão em uma confecção no Cangaíba, na zona leste, na semana passada. (Foto: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress)

Portaria do governo federal é tiro de misericórdia no combate ao trabalho escravo

Às vésperas de votação da segunda denúncia contra Temer, medida agrada ruralistas, setor mais flagrado usando trabalhadores em condições análogas à escravidão.

SÃO PAULO, SP, 12.03.2014: ATO/TRABALHO ESCRAVO/SP - O Sindicato dos Comerciários de SP realiza ato em frente à loja da Schutz contra o trabalho escravo na rua Oscar Freire (Jardins). Segundo a fiscalização do Ministerio do Trabalho, 17 trabalhadores peruanos foram encontrados em situação análoga a de escravidão em uma confecção no Cangaíba, na zona leste, na semana passada. (Foto: Luiz Carlos Murauskas/Folhapress)

Apesar da comoção causada, a portaria que dificulta a fiscalização do trabalho escravo, publicada nesta segunda (16), ao menos num primeiro momento, não deve trazer grandes mudanças à vida de quem já é explorado em fazendas, carvoarias, oficinas de costura clandestina ou obras faraônicas da engenharia civil.

De fato, a Portaria foi um retrocesso sem tamanho. Ou com tamanho: precisamente 129 anos, uma vez que a Lei Áurea foi assinada em 1888. Mas, esse retrocesso foi mais simbólico do que prático, pelo simples fato de que as fiscalizações de trabalho escravo estão praticamente paralisadas há meses. A instituição responsável por elas vem sendo asfixiada nos últimos anos e passou 2017 em estado semicomatoso. Ou seja, fica difícil piorar o que não existe.

ORG XMIT: 394001_0.tif Homens da Polícia Federal em operação que investiga denúncias de trabalho escravo, em fazenda de Pacajá, PA. (Pacajá, PA, 05.10.2005. Foto de Bernardo Gutiérrez/Folhapress)

Homens da Polícia Federal em operação que investiga denúncias de trabalho escravo, em fazenda de Pacajá, PA. (Pacajá, PA, 05.10.2005)

Foto: Bernardo Gutiérrez/Folhapress

Em 21 de agosto, numa audiência pública no Senado, o então chefe da Divisão de Erradicação do Trabalho escravo do Ministério do Trabalho, André Roston, havia oferecido dois dados que, juntos, tornavam-se alarmantes.

Primeiro: cada operação de fiscalização relacionada a condições análogas à escravidão custa entre R$ 60 e R$ 70 mil. Segundo: na época da audiência, restavam míseros R$ 6.630 para cobrir gastos do tipo.

Mas então, se gastaram toda a verba quer dizer que os trabalhos foram intensos nos primeiros meses do ano, certo? Errado. Segundo uma nota técnica do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) publicada no começo do mês, até setembro deste ano haviam sido liberados apenas 73 trabalhadores em situação análoga à escravidão frente a 885 em 2016.

Bom, pode ser que o trabalho escravo tenha diminuído, certo? Errado de novo. Nos últimos anos, o Ministério do Trabalho não realizou concurso para repor seus quadros e há cerca de 1,5 mil postos vagos, de um total de menos de 4 mil. Até julho, haviam sido feitas apenas 49 fiscalizações, frente a 115 em 2016.

Escravidão moderna

O trabalho escravo que existe hoje pelo Brasil afora, vale lembrar, tem pouco a ver com aquela imagem dos negros arrancados da África, trazidos qual mercadoria em navios insalubres, humilhados e negociados em praça pública. No século 21, a exploração da vida humana costuma ser menos escancarada e, no Brasil, as chamadas “condições análogas à escravidão” se caracterizam por quatro fatores, somados ou não: trabalho forçado, jornadas exaustivas, condições degradantes e servidão por dívida.

Um exemplo clássico: o patrão paga a passagem para o trabalhador migrante, depois vende fiado alimentação e hospedagem. O empregado começa a trabalhar para pagar as dívidas, mas o salário nunca é suficiente. Ele nunca conseguirá arcar com o retorno à sua cidade de origem. Está preso ao patrão e ao trabalho. Tornou-se um escravo.

VAZIO,RN,21.09.2017:PROTESTO-FUNCIONÁRIOS-GUARARAPES-LAGOA-NOVA - Protesto de funcionários da Guararapes contra ação do Ministério Público do Trabalho (MPT), em frente a sede do MPT, em Lagoa Nova (RN), nesta quinta-feira (21). A ação do Ministério é motivada por irregularidades identificadas nas fábricas do interior do Estado. (Foto: Frankie Marcone/Futura Press/Folhapress)

Funcionários da fábrica Guararapes protestam contra o Ministério Público do Trabalho (MPT) em Lagoa Nova (RN) em setembro de 2017. O MPT  moveu ação contra irregularidades identificadas nas fábricas do interior do Estado, e os funcionários, levados em ônibus contratados pelas próprias fábricas, defendiam mais emprego e menos fiscalização. (Foto: Frankie Marcone/Futura Press/Folhapress)

Até a última segunda (16), o empregador que fosse flagrado se valendo de práticas como essa seria enquadrado no artigo 149 do Código Penal, que prevê penas de 2 a 8 anos, além de multa. Além disso, sua empresa teria o nome divulgado numa lista, disponível para a consulta pública.

Agora, as coisas mudaram. Com a portaria de segunda, o governo Temer inseriu uma série de condições que dificultam a classificação da escravidão moderna.

Os conceitos de “jornada exaustiva” e “trabalho forçado”, com a nova norma, só valem se houver também restrição à liberdade.

Os conceitos de “jornada exaustiva” e “trabalho forçado”, com a nova norma, só valem se houver também restrição à liberdade. Já para que se caracterize condição “análoga à escravidão” é preciso haver “ameaça de punição, com uso de coação”, “manutenção de segurança armada” que seja diferente da segurança da propriedade  e confisco de documentos pessoais “com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho”.

Dá até pra imaginar o argumento dos donos de carvoaria pelo Brasil afora! “Imagina, seu fiscal, eu só guardei os documentos dos meus empregados para não ter perigo de molhar de suor nas jornadas exaustivas, ou de manchar de sangue quando eles estiverem sendo coagidos pelos meus capangas armados…”

Pois é. Na mesma portaria, o governo passa a exigir que tudo isso seja comprovado com documentos e fotos e que a polícia esteja presente nas fiscalizações. Por fim, na eventualidade de isso tudo acontecer, é bem provável que ninguém fique sabendo quais empresas e marcas se utilizam de trabalho escravo.

Sim, porque antes da portaria, após uma longa disputa político-judicial, a lista com os empregadores afeitos à escravidão, justificadamente conhecida como “lista suja”, passou a ser publicada pela área técnica do Ministério do Trabalho.

Agora, não. A decisão de divulgar ou reter os nomes passa a ser do ministro do trabalho, hoje Ronaldo Nogueira – um pastor evangélico correligionário de Roberto Jefferson e, claro, cupincha do Conde Temer.

Matem o mensageiro

Na ocasião em que reclamou da falta de dinheiro, André Roston previu que dificilmente as coisas mudariam, uma vez que o governo não investiria mais recursos no setor. As previsões não foram completamente corretas porque as coisas, de fato, mudaram: o chefe da Divisão de Erradicação do Trabalho Escravo foi demitido.

O desligamento ocorreu no dia 10 de outubro, menos de uma semana antes da publicação da nova portaria. Na ocasião, várias entidades ligadas ao combate ao trabalho escravo divulgaram uma nota conjunta em sua defesa:

“Testemunhas do trabalho sério, engajado e transparente realizado pela coordenação do combate ao trabalho escravo, estamos convictos de que a exoneração compromete a erradicação dessa violação aos direitos humanos e revela a inexistência de vontade política e o descompromisso do atual Governo com o enfrentamento do problema”.

“Muitas vezes, substituições de chefias ocorrem para aprimorar aquilo que vem se realizando”

Diante das críticas, o ministério se justificou dizendo que “muitas vezes, substituições de chefias ocorrem para aprimorar aquilo que vem se realizando.”  A mensagem deixava certa dúvida. O que, afinal, estava “se realizando” nas repartições de uma instituição falida e legada às traças?

Com a nova portaria, não há mais dúvida: estavam acabando com a possibilidade de punir criminosos que exploram a vida humana com o objetivo de aumentar lucros.

Diante do absurdo, os auditores do trabalho realizaram, nesta quarta, uma paralisação em 13 estados para que o governo volte atrás, o que até que seria razoável, uma vez que o governo atual muda de ideia como Lady Gaga troca de figurino. Há, contudo, que se considerar os interesses por trás da famigerada portaria.

E ganha um contrafilé Friboi quem adivinhar o setor que mais tem sido flagrado escravizando trabalhadores. Sim, eles, os ruralistas, aquele pessoal que coloca as próprias finanças acima não apenas de algumas vidas, mas da preservação da espécie humana como um todo. Que compõem uma das forças mais poderosas da Câmara – que, por sua vez, será responsável por aceitar ou rejeitar a segunda denúncia contra Michel Temer.

Os ruralistas festejaram a medida que escancara de vez as porteiras da escravidão. Mas garantiram que não têm nada a ver com ela. Pode ser… É mesmo provável que sejam coincidências apenas. Ou mais um capítulo da grande conspiração para derrubar o pai de todos os conspiradores.

Foto em destaque: Manifestação do Sindicato dos Comerciários de SP na rua Oscar Freire, em São Paulo, em 2014, quando trabalhadores foram flagrados sendo explorados por fábrica de sapatos.(Luiz Carlos Murauskas/Folhapress)

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