Produtores rurais vivem ilhados e sem alimentos na capital brasileira do etanol de milho

Deserto de grãos

Produtores rurais vivem ilhados e sem alimentos na capital brasileira do etanol de milho

Show do Milhão

Parte 2

O Brasil quer se tornar uma potência mundial dos combustíveis sustentáveis, mas a promessa de sustentabilidade pode, no lugar de beneficiar o planeta, favorecer e ampliar o poder do agronegócio. Nós estamos de olho e investigamos a fundo os impactos do desenvolvimento da produção de combustíveis sustentáveis no país. Esta série é uma parceria com o Drilled, veículo que investiga as forças que impedem a busca por soluções reais para lidar com a crise climática.


Nilfo e Hilária Wandscheer são pequenos produtores rurais catarinenses radicados em Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso. Em uma chácara do tamanho de dois campos de futebol, produzem alimentos como mandioca, batata doce, banana, mamão e alface. Também criam galinha caipira para consumo da carne e dos ovos. 

Mas, apesar de terem tudo isso em casa, precisam ir ao supermercado comprar frutas, legumes e verduras. A chácara do casal é uma das poucas ilhas de agricultura familiar em meio ao monocultivo de grãos em Lucas, berço da produção de etanol de milho no país e uma das 20 cidades mais ricas do agronegócio nacional. 

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Uma das principais propagandas do agro brasileiro é sua capacidade de colocar comida na mesa. É assim que ele se vende e é como tem disputado a narrativa sobre a transição energética, se colocando como solução. Na COP30, foi esse o argumento usado para brigar por fatias do financiamento climático

Mas basta pisar nas terras dominadas pelo agro — como fez o Intercept Brasil em Lucas do Rio Verde — para ver que a realidade é outra. Lucas é vendida como progresso e um hub do agro sustentável. No entanto, mesmo com tanta produção, não consegue sequer alimentar seus moradores. Lá, o alho vem da China, a maçã, da Argentina, e a alface, de São Paulo.

Lucas é um exemplo de como o agro, usando a sustentabilidade como pauta, pode estar abocanhando bilhões da busca por soluções reais contra o colapso do planeta e, ainda assim, seguir sem alimentar o país.

A cidade é vendida como uma terra de oportunidades pela gestão local. “Aqui, a geração de empregos e a qualidade de vida se encontram”, anuncia um vídeo institucional de 2025 da prefeitura, com imagens de araras-canindé, florestas na luz do pôr do sol, crianças sorridentes e grandes lavouras de algodão, soja e milho. 

Luquinha, monumento de Lucas do Rio Verde, fica localizado às margens da BR-163 e traz na mão esquerda uma espiga de milho e na direita, soja. (Foto: Prefeitura de Lucas do Rio Verde/ Reprodução do site)

A propaganda oficial, porém, ignora o que dizem os pequenos agricultores rurais. Segundo eles, é justamente essa opulência dos grãos que tem causado a escassez de alimentos.

No caso de Nilfo e Hilária, tem faltado água no poço comunitário que abastece as chácaras deles e as vizinhas, em uma área de 150 hectares. Para irrigar os plantios, o casal recorre a um poço para uso próprio que construiu. Numa ida ao mercado em agosto deste ano, eles compraram até limão, porque o pé de onde colhiam o fruto morreu. “O abacate está florescendo agora, mas [o abacateiro] não está segurando as frutas”, disse Hilária.

A experiência da queda e da perda de produção do casal é compartilhada por outros agricultores familiares da região, que responsabilizam o avanço dos monocultivos e da urbanização sobre suas propriedades e plantios. 

“Mais de 80% do hortifruti vêm de fora. A soja entrou e avançou dentro dos assentamentos. A agricultura familiar está diminuindo e envelhecendo”, lamenta Nilfo. 

Ao lado da chácara de Nilfo e Hilária foi instalada no início deste ano uma unidade da Cantu Alimentos, um centro de distribuição de hortifruti do Paraná. Com uma unidade em Lucas do Rio Verde e outra na capital Cuiabá, a empresa identificou a necessidade de suprir a demanda interna por alimentos que não são produzidos – ou pelo menos não em quantidade suficiente – nas cidades dominadas pelas commodities do agro.

Só em Lucas do Rio Verde, 60 toneladas de hortifruti vindos de outros estados e mesmo de outros países são vendidas todo mês a supermercados e outros estabelecimentos pela Cantu, informou um funcionário da unidade de distribuição no município. Laranja, batata, alface, tomate, maracujá e outras variedades estão entre os itens comercializados.

Um dos desafios da empresa são as altas temperaturas da cidade, que comprometem a durabilidade de alimentos mais sensíveis ao calor. “O repolho, por exemplo, se você não trouxer meio vendido, vai ter que baixar o preço, queimar para tentar desaguar”, explica o funcionário da Cantu, que preferiu não se identificar.

Feita para o agro 

Em Lucas do Rio Verde, as imensas lavouras de grãos estão quase ao lado das casas das pessoas, de escritórios e estabelecimentos comerciais. As avenidas largas, por onde transitam com espaço caminhões com mais de 20 metros carregados de soja ou milho, comportam silos, lojas de maquinários agrícolas, insumos, bancos de crédito e imobiliárias. As ciclovias levam de casa direto para o trabalho nas agroindústrias. 

A cidade é casa de empresas transnacionais de alimentos como a MBRF, Amaggi e Bunge, e também da FS Bioenergia, pioneira em produzir etanol 100% de milho no Brasil. Com capital norte-americano e brasileiro, a empresa iniciou suas atividades em Lucas em 2017, com sua primeira usina. Depois vieram as de Sorriso e Primavera do Leste. A FS planeja outras duas plantas, também no Mato Grosso – uma em Campo Novo do Parecis e outra em Querência. 

Em Lucas, áreas residenciais fazem fronteira com monocultivos e é comum ruas terminarem nas lavouras e silos. (Foto: Felipe Sabrina/Intercept Brasil)

Segundo dados da prefeitura, a cidade produz mais de 600 milhões de litros de etanol de milho por ano, o que representa cerca de 8% dos 7,55 bilhões de litros produzidos no país em 2024. Lucas responde por 1% de toda a produção nacional de grãos. É o quinto maior produtor de soja do estado e um dos grandes produtores de milho de segunda safra do país – aquele plantado no mesmo lugar em que a soja foi colhida. 

Tanto espaço para os grãos deixa os pequenos produtores de alimentos ilhados em meio aos monocultivos. E basta uma olhada no mapa da cidade para ver que as áreas verdes que restam ali também foram, em sua maioria, cercadas pelas mega lavouras. O Rio Verde, que corta e dá nome à cidade, é protegido por estreitas faixas de vegetação que ainda resistem. Em alguns trechos, a lavoura de grãos está a menos de 50 metros do curso d’água.

Nada disso é por acaso. Lucas do Rio Verde foi projetada para servir ao agro e seus donos. Tudo começou em 1938, quando o ditador Getúlio Vargas implementou no país o projeto Marcha para o Oeste, um plano para ocupar as terras do Centro-Oeste e Norte.

“Conquistar a terra, dominar a água, sujeitar a floresta foram nossas tarefas. E, nessa luta, que já se estende por séculos, vamos obtendo vitória sobre vitória”, disse Vargas, em discurso, em 10 de outubro de 1940, durante uma visita a Manaus, capital do Amazonas.

Sua estratégia foi construir estradas e implantar colônias agrícolas nesses lugares para aumentar o controle do estado na região. A Amazônia e o Cerrado do Mato Grosso começaram a ser mais devastados, e os povos indígenas que viviam na região foram mortos ou expulsos. Essa foi a abertura do caminho para o agronegócio no Mato Grosso e o contexto em que nasceu Lucas do Rio Verde.

Nos anos 1970, essa abertura se intensificou durante o governo civil-militar do ditador Emílio Garrastazu Médici, com o começo da construção da rodovia BR-163. Ela fazia parte do Programa de Integração Nacional, o PIN, que reproduzia a mesma ideia de Vargas. Com mais de 3.200 km ligando Tenente Portela, no Rio Grande do Sul, a Santarém, no Pará, a rodovia organiza o agro em torno do seu eixo.

Com a abertura da BR-163, os primeiros posseiros chegaram à região, embora a criação formal de Lucas do Rio Verde tenha acontecido somente em 1981, pelas mãos do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Incra. 

Lucas foi criada como assentamento em uma porção de terra de 270 mil hectares. Nele foram instaladas entre 180 a 200 famílias de agricultores sem-terra que viviam às margens de um entroncamento de estradas em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul. Conhecido como Encruzilhada Natalino, o acampamento de barracos de lona e madeira reuniu mais de três mil pessoas em luta por terra para morar e produzir.  

A estratégia dos militares foi tentar acabar com o acampamento e evitar que a luta aumentasse. “Foi oferecida para esses abrigados a opção de ganhar terra em outro lugar do país. A condição era sair do acampamento”, explica Sandro Lima dos Santos, professor do Instituto Federal do Mato Grosso, IFMT.

Após esse primeiro assentamento, em um segundo momento da ocupação de Lucas do Rio Verde, os militares passaram a usar discursos nacionalistas de integração do país para estimular a migração de pequenos e médios agricultores do sul, principalmente do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, com apoio de empresas privadas de colonização ou cooperativas colonizadoras.

Elas supriam as necessidades de infraestrutura para moradia e produção, e organizavam documentação e venda das terras para os colonizadores. Foram pelo menos quatro levas de pessoas do Sul e Sudeste que chegaram para colonizar o Mato Grosso ao longo das décadas, com diferentes perfis econômicos. Muitas dessas pessoas ficaram e construíram os impérios do agro que reinam por lá.

Imagens de satélite mostram como os monocultivos passam perto do Rio Verde, em Lucas, e como apenas a área circundada pelo rio é cercada de floresta. (Foto: Reprodução Google Maps)

Hoje, Lucas do Rio Verde tem uma população estimada em 95 mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. Seu Índice de Desenvolvimento Humano, IDH, que vai de 0,000 a 1,000, está entre os mais altos do país – 0,768. Para comparação, o IDH mais alto é 0,862, de São Caetano do Sul, em São Paulo. Segundo dados do IBGE e da prefeitura da cidade, Lucas é a segunda cidade com o maior percentual de crescimento populacional do Centro-Oeste e o segundo maior do Brasil entre as cidades com mais de 50 mil habitantes.

O efeito desse crescimento já é sentido pelo casal Nilfo e Hilária Wandscheer. A cidade e os monocultivos avançaram tanto sobre sua chácara desde que se instalaram ali, em 2007, que hoje a malha urbana está a menos de 300 metros de sua propriedade, e os monocultivos, vários deles, estão do outro lado da rua, a 30 metros de distância.

Na parte de trás da chácara, Nilfo aponta a construção de um conjunto habitacional com duas mil casas, um projeto que está sendo feito com recursos dos governos federal, estadual e municipal. Com um mapa do assentamento em mãos, ele mostra a nova via que será construída no contexto do conjunto habitacional. A estrutura passa pelo meio de sua chácara, por cima do seu plantio. 

Documento mostra traçado da via que passará por dentro da chácara de Nilfo, em Lucas do Rio Verde. (Foto: Reprodução)

A vida no deserto

As consequências do avanço do agro são sentidas no dia a dia de Lucas do Rio Verde. Andar a pé na cidade é um desafio por causa das distâncias das longas avenidas, do calor e da falta de árvores que façam sombra. Como não há vegetação que equilibre as temperaturas, no fim do dia o tempo pode virar, e Lucas fica gelada de uma hora para outra. Tempestades de areia e vento têm se tornado comuns na cidade, segundo os moradores.

“As ventanias aumentaram muito nos últimos anos, porque não tem mais árvores, é uma área de corredor de vento. Isso também faz com que o empobrecimento do solo vá se acelerando. Há sempre a promessa de que a tecnologia vai resolver tudo, mas a gente está falando de recursos naturais que têm um limite”, alerta a pesquisadora Márcia Montanari, do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador, Neast, da Universidade Federal do Mato Grosso, UFMT. 

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Em 28 de maio deste ano, a cidade foi atravessada por uma tempestade de areia e vento que fechou o tempo, derrubou poste, galhos de árvores, rasgou toldos plásticos e fez a temperatura cair de 34 a 15 graus em menos de 12 horas. 

“Esses eventos são resultado da combinação de solo exposto, períodos de seca prolongados e a chegada de frentes frias mais intensas. Quando uma frente fria avança, ela desloca o ar quente e seco que está sobre a região, gerando também rajadas de vento muito fortes. Com a grande área de solo seco e desagregado, se levanta a poeira e cria as tempestades de areia”, explica a meteorologista e consultora em análise climática Ana Paula Paes. Ela acrescenta que Lucas do Rio Verde tem passado por essas tempestades com mais frequência por estar em uma área de expansão agrícola, com grandes extensões do solo descobertos durante a estiagem.

A página “Lucas do Rio Verde Agora”, no Instagram, publicou um vídeo da tempestade do dia 28 de maio. Nos comentários, moradores atribuíram o evento climático ao desmatamento, que deixa a “terra nua” e a cidade sem proteção no seu entorno.

“Estou há sete anos em Lucas, e sempre tem o período de seca, que é agora, e o período de chuva. Na seca o tempo esfria, mas a cada ano esfria mais, e a poeira entra nas casas, cobre as casas. Aqui a gente ainda consegue se proteger com esses terrenos do lado, mas tem casa que tá perto dos plantios, e fica coberta de areia”, relatou a dona de um hotel na cidade. 

As notícias sobre Lucas do Rio Verde mostram a repetição de eventos climáticos extremos. Em outubro de 2008, um vendaval arrancou postes e derrubou árvores na cidade. A notícia aponta que houve até granizo

Em setembro de 2019, uma chuva forte destruiu parte do teto da transnacional de alimentos BRF – hoje MBRF, após fusão com a Marfrig –, atingindo máquinas e alagando setores da fábrica. Em outubro de 2023, mais chuva e vendaval arrancaram seis postes em Lucas, deixando os munícipes sem energia por horas. Em outubro de 2024, uma mulher foi arrastada numa enxurrada. Ela foi salva por um grupo de cinco homens que se juntaram em um cordão humano para segurá-la.

Nossa reportagem flagrou tempestade de vento e areia, em maio de 2025, em Lucas do Rio Verde. (Foto: Felipe Sabrina/Intercept Brasil)

“Está muito mais quente, seco e abafado. [A chuva] não está mais tão regulada. Acho que é porque a cidade está avançando muito, muito asfalto, a água não escoa e não refresca o chão. E não temos mais o mato grande, fechado, que é o que refresca e traz a chuva e umidade. Hoje só vai abrindo e plantando, abrindo e plantando, acontece isso. E cada vez vai estar pior”, relatou Damasília Santos, agricultora de uma horta comunitária que há 22 anos vive em Sorriso, vizinha a Lucas.

A meteorologista Ana Paula Paes confirma a percepção de Damasília, que se estende para todo o estado. “No Mato Grosso, nós observamos algumas tendências claras nas últimas décadas. As chuvas estão mais irregulares, com o início da estação chuvosa cada vez mais tardio, e veranicos mais frequentes, que são os períodos curtos de tempo quente e seco durante a estação chuvosa”, afirma Paes.

Segundo ela, as temperaturas mínimas e máximas também têm aumentado, especialmente durante a primavera e o começo do verão. “Os ventos e tempestades estão ficando cada vez mais intensos, reflexos de sistemas atmosféricos mais energéticos. Essas mudanças estão ligadas ao aquecimento global e ao desmatamento regional, que altera o ciclo de umidade da Amazônia e do Cerrado. Áreas mais desmatadas tendem a sentir mais rapidamente esses efeitos”.

Paes faz um alerta: se até 2050 não houver redução consistente de emissões de gases de efeito estufa e recuperação de vegetação, o número de dias extremamente quentes pode aumentar bastante, gerando problemas em diferentes âmbitos.

“Para uma cidade como Lucas do Rio Verde, o aumento da temperatura pesa diretamente na saúde. Mais casos de desidratação, exaustão térmica e problemas respiratórios. Também afeta a produtividade agrícola, já que plantas e animais sofrem estresse térmico. A cidade sente ainda o impacto no consumo de energia, no risco de queimadas e no desconforto térmico urbano, especialmente em áreas muito pavimentadas e com pouca arborização”.

Mais etanol de milho, mais doenças

E não é só a mudança do clima que ameaça a vida em Lucas. As notícias recentes sobre o aumento da produção de etanol de milho, especialmente com a instalação de novas usinas, têm gerado preocupação ao pesquisador Wanderlei Pignati, do Neast, da UFMT. Isso porque o aumento da oferta do biocombustível significa também o aumento da produção do grão e, consequentemente, o incremento do uso de agrotóxicos.

Médico e doutor em Saúde Pública, Pignati estudou o avanço da prevalência de malformações congênitas – que ocorrem durante o desenvolvimento do feto –, câncer infantojuvenil, aborto e nascimento de crianças com baixo peso em regiões de alta produtividade de grãos no Mato Grosso, como os municípios de Sorriso, Lucas do Rio Verde, Campo Novo do Parecis, entre outros.

Região próxima à chácara do casal Nilfo e Hilária, em Lucas do Rio Verde. (Foto: Felipe Sabrina/Intercept Brasil)

“No Brasil, a cada mil crianças que nascem vivas, quatro têm malformação. No Mato Grosso, são 10 [a cada mil], e nas quatro regiões [mais produtivas do estado], varia de 20 a 37 crianças. A causa disso é a grande utilização de agrotóxicos”, relata o médico e pesquisador. 

Uma análise recente feita pelo InfoAmazonia e pela pesquisadora do Observatório Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz Tatiane Moraes mostra que uma criança nascida em Lucas do Rio Verde tem risco 20% maior de nascer com anomalias congênitas do que uma criança nascida em Juruena, a 670 quilômetros de distância, porém no mesmo estado. Ainda comparando as mesmas cidades, o risco de óbitos fetais é 30% maior em Lucas.

A explicação para isso é a presença massiva das lavouras em Lucas do Rio Verde – mais de 50% da cobertura do município – e o uso de agrotóxicos, contra menos de 5% de lavouras sobre Juruena.

Em dissertação de mestrado orientada por Pignatti em 2011 na UFMT, foi constatada a presença de agrotóxicos no leite de mães residentes em Lucas do Rio Verde. Na época, a prefeitura do município reagiu mal à repercussão nacional dos resultados e questionou a metodologia utilizada na investigação.

Em 2017, Pignati, em outro estudo, também já apontava o uso de agrotóxicos nas lavouras como a provável causa de adoecimento entre pessoas expostas a eles. Na época, com dados de 2015, o estudo mostrava o predomínio de área plantada dos cultivos de soja, milho e cana-de-açúcar no país, sendo essas culturas responsáveis por cerca de 70% do uso de agrotóxicos em todo o território nacional. O Mato Grosso já despontava como o maior consumidor de veneno.

Este elevado consumo de agrotóxicos tem se mostrado como fator de risco para o desenvolvimento de câncer no estado, segundo pesquisadoras do Instituto Nacional do Câncer, o Inca. 

Um estudo realizado por pesquisadores de Mato Grosso analisou as mortes por câncer na região entre 2000 e 2015, para entender se os números estavam subindo ou estáveis. Foram registrados 28.525 óbitos por câncer, sendo os tipos mais frequentes pulmão, próstata, estômago, mama e fígado, enquanto as maiores taxas de mortalidade ocorreram nas regiões Médio Norte – Lucas do Rio Verde, Nova Mutum e Sorriso, Baixada Cuiabana e Sul Matogrossense. 

‘As chuvas estão mais irregulares, com o início da estação chuvosa cada vez mais tardio’.

De acordo com as biomédicas Katia Soares da Poça e Marcia Sarpa de Campos Mello, do Inca, a taxa padronizada de mortalidade por câncer no estado também aumentou de 74,3 para 82,0 por 100 mil habitantes no período entre 2000 e 2015, com tendência crescente geral.

Para além dos prejuízos à saúde, há também o prejuízo aos cofres públicos. Pignati adiantou que um estudo em curso no Mato Grosso aponta que, para as intoxicações crônicas por agrotóxicos, o valor gasto com tratamentos pode ser de 20 a 30 vezes maior que o apontado numa pesquisa da Fiocruz de 2012, relativo às intoxicações agudas. O tratamento do câncer infantojuvenil seria um desses casos crônicos. 

No Mato Grosso, foram registradas 242 notificações de intoxicações por agrotóxicos entre 2015 a 2017, o que resultou em um custo médio de R$ 718,15 por indivíduo atendido no SUS. 

“Ao considerar o valor total para o período, considerando também os casos de subnotificação, os gastos públicos para o atendimento no estado representaram aproximadamente R$ 8,6 milhões nestes três anos, ou seja, aproximadamente R$ 2,8 milhões por ano no Mato Grosso”, calculam Poça e Mello. 

A maioria das intoxicações ocorreu na região Norte (44,62%) e nos municípios de Nova Mutum, Sinop e Sorriso (23,13%), com 66,53% da exposição ocorrendo em ambiente de trabalho, 44,21% foram intoxicações acidentais e 76,86% destas intoxicações foram por exposição aguda única, ou seja, que acontece uma vez em um período de 24 horas.

O uso de grãos transgênicos, especialmente o milho, utilizado na produção de ração animal e do etanol batizado de sustentável por empresários do agro – mesmo sem ser –, também pode influenciar o aumento de consumo de agrotóxicos, como o herbicida glifosato, usado na soja. “A consequência disto é o surgimento de resistência de pragas também, aumentando o consumo de outros tipos de agrotóxicos”, diz o estudo de 2017 de Pignati. 

Em 2025, deputados do Mato Grosso aprovaram por 21 votos a 3 um projeto de lei reduzindo as distâncias limite para aplicação de agrotóxicos em relação a povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água, moradias isoladas, agrupamento de animais e nascentes. Antes definida em 300 metros, a distância foi para 25 metros e, em alguns casos, totalmente suprimida. 

“Quando a gente questionou, em audiência pública, quais os critérios científicos que eles usaram para reduzir para zero [a distância mínima], eles disseram que não tem critério científico, disseram ‘é a nossa vontade’”, relembra Márcia Montanari.

‘A soja entrou e avançou dentro dos assentamentos. A agricultura familiar está diminuindo e envelhecendo’.

Para as especialistas do Inca, os impactos dessa nova medida do legislativo mato-grossense serão graves. No curto prazo, o aumento de intoxicações agudas em diferentes faixas etárias, com o aparecimento de náusea, dor de cabeça, fadiga e outros sintomas. 

“Em médio e longo prazo estão a contribuição para o aumento no número de casos de diferentes agravos como abortos, infertilidade, malformações, depressão, Alzheimer, Parkinson, alterações hormonais, doenças respiratórias graves e muitas outras. Outra possibilidade é o aumento nos casos de câncer”, dizem Poça e Mello.

Procuramos a assessoria do prefeito de Lucas para uma entrevista, mas não tivemos retorno. Para o casal Nilfo e Hilária, o futuro amedronta. “Não tem como a gente produzir alimento saudável se em volta tem agrotóxico”, afirma.

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