
Há dez anos, em setembro de 2015, o governo de Geraldo Alckmin, então no PSDB, anunciou que iria transferir mais de um milhão de alunos da rede estadual de São Paulo para separar os ciclos do ensino fundamental e o ensino médio em escolas distintas. A justificativa era muito semelhante à da reorganização feita 20 anos antes, em 1995, na gestão Mário Covas, também do PSDB: escolas de ciclo único seriam mais fáceis de administrar.
Um mês após o anúncio, descobriu-se que a reorganização de Alckmin incluía fechar 94 escolas. O governo ainda agregou mais uma razão para isso, além da suposta eficiência das escolas de ciclo único: como a população iria reduzir, era necessário enxugar a rede de ensino.
Contra essa reorganização 2.0, mais de 200 escolas estaduais já estavam ocupadas pelos secundaristas no final de novembro de 2015. Pesquisadores demonstraram que não havia evidências de que escolas de ciclo único fossem mais fáceis de gerir nem de que a mudança demográfica – fenômeno desigualmente distribuído no território – justificaria fechar escolas naqueles locais. Pressionado pelos órgãos de controle e sem apresentar estudo sobre os impactos das medidas, o governo Alckmin recuou, e o secretário da educação, Herman Voorwald, caiu.
Agora, dez anos depois, o governo Tarcísio de Freitas, do Republicanos, repetiu o enredo. Propôs a “cisão” ou “desagregação” das escolas estaduais com mais de 1.200 matrículas. Alegou ser um projeto piloto, por adesão voluntária e sem fechamento de escolas. Mas, na prática, mais de 300 escolas e pelo menos 360 mil alunos seriam alvos potenciais da medida.
Na impossibilidade de serrar prédios escolares ao meio, a proposta é separar ciclos distintos em turnos diferentes – anos finais do ensino fundamental pela manhã e anos iniciais à tarde, por exemplo – e fazer com que cada etapa funcione numa escola independente. Para famílias com filhos de idades diferentes, o efeito prático equivale ao das transferências forçadas de 2015.
Para tornar a medida impopular mais palatável ao público, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, Seduc-SP, liderada por Renato Feder, distribuiu às suas unidades regionais de ensino uma exposição de motivos com “evidências” científicas que justificariam a reorganização.
Entre os argumentos, alegou haver “indícios que apontam que escolas com complexidade mais elevada costumam ter maior dificuldade em promover níveis de aprendizagem adequados”. Isto é, escolas menos “complexas” teriam desempenhos melhores nas avaliações.
Contudo, nenhum dos três estudos citados no modelo da proposta estabelece relação unívoca entre o tamanho da escola e a complexidade da gestão. Todos apontam para variáveis como perfil socioeconômico do alunado, formação das equipes pedagógicas e infraestrutura escolar.
Além disso, nenhum dos estudos recomenda dividir escolas para melhorar seus resultados. Afinal, é pouco racional supor que ter duas equipes diretivas concorrendo nas decisões dentro de um mesmo prédio escolar reduz a complexidade da gestão.
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A reorganização de 2025 do governo Tarcísio atende a um segundo propósito: ampliar o número de escolas para aprofundar a competição entre elas na frenética corrida para inflar os números nas avaliações oficiais.
No momento, a principal delas é o Sistema de Avaliação da Educação Básica, Saeb, cujas provas ocorrerão em dezembro nas redes públicas de todo o país. Em meados de 2026, pouco antes das eleições, será divulgado o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica , o Ideb, resultante das provas do Saeb e que será utilizado por 100% dos governadores candidatos à reeleição para demonstrar ao eleitorado o “salto” da qualidade da educação em seus estados.
Em busca dessas “evidências”, Tarcísio e Feder têm feito qualquer coisa para elevar os indicadores em São Paulo: treinamentos intensivos em Português e Matemática (disciplinas focalizadas pela prova nacional), oferta de premiações em dinheiro a estudantes e educadores (com um ridículo campeonato denominado “Brasileirão Saeb”), punições e gestores e maracutaias diversas para alterar a “amostra” de estudantes que farão o exame.
Em agosto, por exemplo, a Seduc-SP tentou transferir milhares de alunos com mais de 18 anos do Ensino Médio regular para a Educação de Jovens e Adultos, EJA. O objetivo era retirar os estudantes com escolarização mais atrasada do público-alvo do Saeb – que não inclui a EJA. O projeto foi suspenso por uma decisão judicial.
Mais recentemente, a administração estadual passou a pressionar os diretores de escola para excluírem estudantes faltosos do sistema público, atribuindo-lhes o status “NCOM” (não comparecimento) – medida distinta da mera reprovação por faltas, pois elimina os estudantes antes da reprovação.
A tentativa de redimensionar as escolas estaduais seria mais um elemento deste vasto cardápio de “ajustes” para elevar artificialmente os indicadores educacionais no estado de São Paulo.
Ainda pior que o desprezo do governo Tarcísio pelas evidências – vide o caso recente do uso de avaliações sem base estatística na rede estadual, que resultou no afastamento de 225 diretores escolares – foi o timing político da reorganização 3.0, lançada justamente nos dez anos das ocupações escolares que escancararam o rechaço da sociedade a políticas que tratam estudantes como peças descartáveis.
Noticiada a reorganização, não demorou para que a Seduc-SP, diante do mal-estar causado na rede, apresentasse um novo plano, que ela batizou de “rebalanceamento”. Desta vez, a ideia é aumentar o número de quadros na gestão de escolas com mais de 1.500 alunos e “rebalancear” – isto é, reduzir – esse número nas unidades com até 600 matrículas (28,9% da rede).
Qual a necessidade de usar escolas públicas como laboratórios de experimentos econométricos em que estudantes são feitos de cobaias?
Atualmente, a definição do tamanho das equipes gestoras é feita com base no número de turmas das escolas. A proposta de fazer isso com base na quantidade de alunos parece de fato mais racional.
Contudo, para além da economia de recursos do erário paulista, não sabemos o que a mudança no tamanho das equipes gestoras causará nas escolas, posto que as evidências científicas disponíveis apontam que a complexidade da gestão de uma escola também não depende unicamente do tamanho da equipe gestora.
No comunicado oficial da Seduc-SP à imprensa, lê-se que as mudanças visam “garantir uma equipe pedagógica proporcional ao tamanho e necessidades das escolas” e incluem um “ajuste na função dos coordenadores de gestão pedagógica por área de conhecimento”.
Na prática, o cargo de coordenador pedagógico das áreas do conhecimento, antes reservado a professores concursados, agora poderá ser ocupado por docentes temporários, renovando o descompromisso da gestão Tarcísio com a realização periódica de concursos públicos e com o fortalecimento das carreiras na educação estadual.
Se o governo realmente estivesse interessado em testar o efeito do tamanho das escolas ou das equipes gestoras no desempenho em avaliações oficiais, investigaria o que ocorreu com as diversas unidades da rede estadual que encolheram ou que tiveram as suas equipes modificadas ao longo dos anos. Qual a necessidade de usar escolas públicas como laboratórios de experimentos econométricos em que estudantes são feitos de cobaias?
Em pouco mais de uma semana, a reorganização radical pretendida por Feder e Tarcísio deu lugar a uma reorganização 4.0 que é totalmente diferente, mas ainda amparada no evangelho da eficiência administrativa e da melhoria dos indicadores; e – claro – sem qualquer consulta às comunidades escolares.
Mesmo sem conhecermos os resultados da reorganização da vez, o recuo do governo Tarcísio com relação à proposta anterior só vem confirmar a fragilidade de suas justificativas baseadas em “evidências”. E, como nem tudo são más notícias, o recuo também demonstra o temor do governo com as reações da sociedade ao experimentalismo inconsequente de Feder e seus assessores. O cálculo eleitoral do bolsonarismo para 2026 em São Paulo não comporta esse risco.
A VIRADA COMEÇA AGORA!

