A Secretaria de Recursos Hídricos do Ceará, a SRH, autorizou a Casa dos Ventos, empresa parceira do TikTok na construção de um data center em Caucaia, no Ceará, a usar um volume de água 7,3 vezes maior do que o consumo declarado inicialmente no projeto, e concedeu a outorga com base em uma declaração de suficiência hídrica apresentada pela própria empresa.
Nos documentos submetidos para obter a licença prévia, a primeira de três fases do licenciamento ambiental, a Casa dos Ventos havia declarado que o consumo total diário do data center ficaria em 19,7 mil litros. Mas na licença de instalação, emitida pela Superintendência do Meio Ambiente do Ceará, a Semace, no dia 14 de novembro, o volume autorizado pela SRH foi de 144 mil litros de água por dia.
A autorização que libera o data center – infraestrutura conhecida por seu uso intensivo de água e energia – a consumir um volume mais elevado de água levanta preocupações sobre o impacto socioambiental do empreendimento, especialmente considerando o contexto de Caucaia, que declarou emergência por seca ou estiagem em 16 dos últimos 21 anos.
Foram anexadas à licença de instalação, a segunda das três fases do licenciamento e a que autoriza o início das obras, duas outorgas distintas. Cada uma das autorizações liberou a empresa a usar 26,28 milhões de litros de água por ano – ou 72 mil litros de água por dia. A soma das duas outorgas, portanto, significa que foi permitido o uso de 144 mil litros de água por dia.
O órgão de gestão hídrica também estabeleceu que a empresa deve apresentar, em até 120 dias após a emissão da licença prévia, um parecer técnico que ateste a disponibilidade hídrica.

O Intercept Brasil questionou a SRH sobre a declaração de disponibilidade hídrica que deveria ter sido apresentada no pedido de autorização. A pasta disse que, no ato de solicitação, o “requerente declara que o manancial apontado como fonte de suprimento é capaz de satisfazer a demanda solicitada”. Como o projeto foi considerado “de baixo impacto”, o empreendedor é quem assume a responsabilidade.
Mas para Rárisson Sampaio, assessor político no Instituto de Estudos Socioeconômicos, o Inesc, e membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB do Ceará, esse arranjo configura um tipo de fiscalização passiva.
“Na prática, é possível dizer que não ocorre uma verificação real a cada projeto, com a outorga funcionando a partir da declaração de disponibilidade hídrica prestada através de um simples formulário pelo empreendedor, tal qual um termo de uso”, explicou.
‘Essa prática pode comprometer os múltiplos usos dos recursos hídricos’.
“Essa prática pode comprometer os múltiplos usos dos recursos hídricos, diretriz fundamental da gestão hídrica nacional, constante tanto na Política Nacional de Recursos Hídricos, quanto na política estadual. Também há comprometimento da garantia do uso prioritário dos recursos hídricos para o abastecimento humano e dessedentação de animais, sobretudo em um estado onde a totalidade do seu território é de clima semiárido e 95% está em áreas sensíveis a processos de desertificação”, disse Sampaio.
Questionamos também a Semace, a Companhia de Gestão de Recursos Hídricos do Ceará, Cogerh, e a Casa dos Ventos sobre a divergência entre a estimativa de consumo diário no projeto do data center, a quantidade autorizada e a vazão para extrair água dos poços artesianos.
A Cogerh disse, por meio de sua assessoria de imprensa, que “adotou integralmente os princípios da precaução e da segurança hídrica”, que estabelece que, mesmo quando o dano ambiental é incerto, existe a obrigação de proteger o meio ambiente.
Também afirmou que a área de interesse “está inserida em uma região de dunas, reconhecida por sua boa disponibilidade hídrica e pela elevada incidência de chuvas”. Por fim, acrescentou que o “impacto associado ao uso solicitado foi classificado como de baixa magnitude”. A SRH reiterou a mesma resposta da Cogerh.
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Já a Casa dos Ventos destacou que os volumes informados nas outorgas “representam apenas a vazão máxima permitida para o uso dos poços artesianos, e não o consumo projetado para o empreendimento, que segue como informado no RAS [relatório ambiental simplificado]”. A empresa pontuou, ainda, que foram solicitadas duas outorgas “com objetivo de se ter uma redundância operacional”.
A Semace ressaltou que “a outorga não é compromisso de uso total do volume, mas sim uma cota regulatória que assegura segurança hídrica para o empreendimento, garantindo que o manancial atende à demanda prevista.” O órgão disse ainda que a Semace e a Cogerh “podem ter entendido que a outorga mais alta representa apenas uma margem de segurança ou capacidade operacional”.
Na prática, isso significa que a empresa não necessariamente irá usar todo o volume concedido na outorga, embora fique autorizada para usar, se julgar necessário.
Na avaliação de Paulo Sinisgalli, professor do curso de Gestão Ambiental da Universidade de São Paulo, a USP, há dois elementos que chamam atenção nesse processo.
“Duas coisas causam estranheza. Primeiro, é o fato de [a empresa] ter inicialmente pedido um volume e depois a outorga emitida foi de sete vezes mais na licença de instalação. Segundo, é pedir só depois, como condicionante da licença de instalação, um parecer técnico sobre a disponibilidade hídrica. Deveria ter sido pedido o parecer técnico entre a licença prévia e de instalação”, disse Sinisgalli ao Intercept.
Casa dos Ventos reconhece escassez de água na região do data center
A diferença entre o volume outorgado e o solicitado é mais um ponto de tensão no processo de licenciamento conduzido pela Semace, que já vinha sendo questionado por organizações de sociedade civil por ter enquadrado o empreendimento como de baixo impacto, o que levou à dispensa de um relatório ambiental mais aprofundado.
Mas o consumo de água mais alto que o previsto também acende alertas sobre a disponibilidade hídrica para o data center – ainda mais considerando que comunidades vizinhas ao empreendimento, inclusive indígenas, ainda dependem de cisternas e caminhões-pipas para ter acesso à água.
‘É uma decisão que viola direitos e agrava a insegurança hídrica local’.
Para Cynthia Picolo, diretora-executiva do Laboratório de Políticas Públicas e Internet, o Lapin, o caso revela como grandes empreendimentos no setor de data centers vêm apresentando dados “incompatíveis com a realidade enquanto o poder público aceita informações claramente subestimadas”.
O Lapin é uma das organizações que têm, junto aos indígenas Anacé, pedido uma ação do Ministério Público Federal, MPF, devido às inconsistências no processo de licenciamento ambiental.
“Declarar consumo de 19 mil litros e receber autorização para captar 144 mil sem justificativa revela uma política que negligencia comunidades e a gestão responsável de recursos naturais. Autorizar a exploração dos aquíferos do Cauípe, em uma região já marcada por conflitos pela água, é uma decisão que viola direitos e agrava a insegurança hídrica local”, disse Picolo.
Em setembro, o Intercept mostrou como a questão da água estava no centro da mobilização de moradores contra o empreendimento. Caucaia é um município que já sofre há alguns anos com escassez hídrica. Em 16 dos últimos 21 anos, o município declarou emergência por seca ou estiagem.
A própria Casa dos Ventos reconheceu, no relatório ambiental simplificado que compõe o licenciamento, que a região hidrográfica onde o empreendimento está localizado tem uma situação hídrica insuficiente.

“A referida bacia tem uma área de drenagem de 15.085 Km², correspondente a 10,18% do território cearense, sendo uma região hidrográfica formada por 16 bacias independentes, abriga o mais importante centro consumidor de água do estado, que é a região Metropolitana de Fortaleza (RMF), onde a disponibilidade hídrica tem sido insuficiente para o atendimento da população e para o suprimento de todas as atividades econômicas”, pontuou a empresa.
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