Hoje, turistas passeiam sobre o que foi um vilarejo de palestinos massacrados em 1948. É um “genocídio contínuo”, diz filha de sobrevivente. Foto: Erick Dau/Intercept Brasil.

'Genocídio contínuo'

Visitamos o local de massacre palestino que Israel transformou em balneário


Quando Donald Trump anunciou, em fevereiro deste ano, sua intenção de tomar a Faixa de Gaza e transformá-la na “Riviera do Oriente Médio”, houve indignação. A provocação (ou promessa) feita em entrevista ao lado do primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu ganhou tons mais obscenos dias depois, quando o presidente dos EUA compartilhou um vídeo feito por inteligência artificial em que aparece ao lado de Netanyahu em resorts, aproveitando “a nova Gaza” cercado de mulheres, luxo e dinheiro. 

O que soou como mais um escárnio trumpista, marcado pelo exagero e o absurdo é, no entanto, realidade a alguns quilômetros dali. O que é hoje o balneário de Dor, concorrido destino turístico ao norte de Israel, foi Tantura até 1948 – um dos mais proeminentes vilarejos agrícolas e pesqueiros da Palestina, à época com 1,.7 mil habitantes. 

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Debaixo do estacionamento que dá acesso à praia paradisíaca e do resort Holiday Village Dor, há covas coletivas. Ali, foram enterrados os cerca de 300 palestinos mortos no massacre feito por uma milícia sionista em 22 de maio daquele ano, dias depois da criação do estado de Israel. 

“Quem está enterrado ali é a minha família. São meus tios, os avós que não tive o direito de conhecer, parentes e amigos. São as pessoas do lugar de onde venho”, diz Jihan Sarhan, apontando para o estacionamento. 

A palestina de 57 anos é filha de uma sobrevivente do massacre. Sua mãe, Rashida Hassan, tinha 18 anos quando escapou dos ataques com as duas filhas, de quatro meses e dois anos. Viu o marido, pais e alguns dos irmãos serem mortos. 

É final de julho de 2025, alto verão em Israel, e Dor vive o domingo em clima de normalidade. A praia está lotada, e o fluxo de famílias e turistas é intenso. Há bandeiras israelenses por toda a parte. Jihan fala a alguns metros de grandes chuveiros, instalados antes da faixa de areia. Um senhor de cerca de 70 anos, de calção, chinelos e sem camisa caminha até as duchas. Aciona a cordinha e libera litros de água. Repete o gesto e banha-se uma, duas, três, dez vezes, enquanto nos olha. 

Em Dor, o banho é livre. Em Gaza, os palestinos morrem de sede. Foto: Erick Dau/Intercept Brasil

Em Gaza, a uma hora e meia de carro dali, Israel utiliza a sede e a desidratação como armas de guerra contra palestinos. Naquela mesma semana, especialistas da ONU denunciaram a privação deliberada de acesso à água potável no enclave.  

“É impossível não relacionar o que acontece hoje em Gaza com o que aconteceu em Tantura. As pessoas que estão sendo mortas em Gaza são os netos de quem foi expulso dos territórios palestinos em 1948, inclusive de Tantura. São 77 anos de um genocídio contínuo”, diz Jihan. “É muito duro vir aqui e ver as filas de carros em cima das covas coletivas. Foi tudo construído sobre os escombros das áreas demolidas”, completa. 

Mas, se para Jihan e palestinos sobreviventes deste e outros massacres, estar em Tantura é uma experiência traumática e dolorosa, para israelenses e turistas pode ser absolutamente trivial. No balneário de Dor, sem qualquer referência ao massacre ocorrido ali, a história permanece soterrada pelo cimento. 

“Lugar maravilhoso! Passamos uma noite nesse resort. É muito próximo à praia, que é uma das mais bonitas de Israel. Um refúgio perfeito para crianças, já que a maior parte da praia é de águas rasas”, escreveu uma turista isralense em um site para avaliação de hospedagens.  

Vista aérea do resort no meio do balneário. Foto: reprodução.

De Tantura a Gaza

O contraste entre as experiências ilustra uma fissura mais profunda, inscrita na fundação do estado de Israel. A Nakba (catástrofe, em árabe, termo utilizado pelos palestinos para denominar o conjunto de massacres, expulsões e deslocamentos forçados que deram origem a Israel) é negada pela historiografia oficial e um tabu na sociedade israelense. 

No cotidiano, o negacionismo se traduz em mecanismos de apagamento contínuo dos episódios. Para historiadores como o israelense Ilan Pappé, os massacres fazem parte da limpeza étnica que está na base da criação do estado de Israel. O reconhecimento dos massacres, afinal, desmontaria um dos mitos da historiografia oficial isralense –  nesse caso, o de que os palestinos teriam abandonado suas casas voluntariamente em 1948. 

Fotos do acervo de Jihan mostram a expulsão de sua comunidade nos anos 1940. (Acervo pessoal Jihan Sihan)

Mais do que isso: para Pappé e outros pesquisadores da historiografia crítica, o reconhecimento da limpeza étnica é indispensável para impedir o genocídio atual em Gaza, baseado na mesma ideologia e sustentado por 77 anos de práticas institucionalizadas por Israel. 

“Limpeza étnica é mais do que uma política, é uma ideologia. E, se a gente não estudar, não analisar a conexão entre a ideologia sionista e o genocídio, a gente nunca vai conseguir impedir as ações do estado israelense contra a população palestina”, disse o historiador em visita recente ao Brasil. 

Justamente por isso, a memória de Tantura esteve no centro de uma disputa historiográfica que envolveu a revogação de um título acadêmico, o silenciamento de uma pesquisa e determinou a saída definitiva de Pappé de Israel, nos anos 2000. O pesquisador Teddy Katz, seu aluno na universidade de Haifa, defendeu em 1998 uma dissertação de mestrado sobre a história de cinco vilarejos costeiros palestinos naquela região. 

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A pesquisa incluía mais de 120 depoimentos: metade de sobreviventes do massacre de Tantura e seus descendentes e a outra metade de israelenses, incluindo soldados da chamada “Brigada Alexandroni”. O grupo que invadiu o vilarejo na madrugada de 22 para 23 de maio de 1948 era uma das seis unidades paramilitares que integravam a milícia Haganah, que depois se tornou o núcleo do exército de Israel (IDF, na sigla em inglês).

Aprovada com grau “extremamente alto”, a dissertação foi aclamada e considerada “excelente”. Mas quando o trabalho ganhou repercussão na mídia, dois anos depois, foi descredibilizado. Os soldados entrevistados negaram suas declarações e acusaram o pesquisador de falseamento. Teddy Katz sofreu perseguição jurídica, perdeu o título e foi obrigado a se retratar – o que fez, sob pressão. 

Arrependeu-se horas depois, mas já era tarde. Retomou o título de mestre apresentando uma nova tese, aprovada com grau baixo e retirada da biblioteca da universidade. Pappé, que apoiou Katz publicamente, pediu demissão da universidade em 2007. Mudou-se para o Reino Unido e passou a lecionar na Universidade de Exeter. 

‘Eles não queriam os sobreviventes por perto’

Para Jihan, duvidar da existência do massacre nunca foi uma opção. Por causa da expulsão forçada, nasceu em Fureidis, vilarejo que fica em uma montanha a menos de cinco quilômetros de Tantura. Foi para lá que fugiram todos os sobreviventes do massacre de 1948, esperando retornar em poucos dias para suas casas.

Deve à sua mãe, no entanto, a permanência no local. “Sou grata à minha mãe por ter ficado e ter me permitido estar aqui hoje para contar a história”, diz. É que, dias após o massacre, caminhões israelenses chegaram a Fureidis, então uma pequena aldeia de 15 casas, para levar as famílias de Tantura para longe dali, especialmente para campos de refugiados na Jordânia. “Eles não queriam os sobreviventes por perto”, explica. 

Rashida se escondeu nas montanhas com as duas filhas e conseguiu escapar da segunda expulsão forçada. Ficou naquilo que os palestinos chamam de “territórios de 48” – o estado de Israel –, compondo a população enquadrada oficialmente como “árabe-israelense” (hoje, cerca de 20% da população total de Israel). Aos 18 anos, sozinha com duas bebês, lutou para sobreviver. 

Resort em Dor: um ‘lugar maravilhoso’ para os turistas, sem nenhum sinal do passado. Foto: Erick Dau/Intercept Brasil.

Começou a trabalhar em subempregos para alimentar as crianças e, anos depois, viveu uma nova tragédia: a filha mais nova, então com seis anos, foi atropelada ao correr sozinha para uma estrada enquanto a mãe trabalhava. “São Nakbas contínuos. Essas tragédias só aconteceram por causa da primeira”, lamenta Jihan, lembrando também a história de um seus tios. Sobrevivente de Tantura, foi deslocado para o campo de refugiados de Tulkarm, na Cisjordânia – de onde foi expulso em uma incursão israelense. 

Nascida em 1968, Jihan cresceu no período de expansão da ocupação israelense na Palestina. Em 1967, na Guerra de Seis Dias, Israel anexara Jerusalém Oriental, ampliando o controle sobre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza e ocupando as Colinas de Golã. Como palestina vivendo em Israel, fortaleceu os vínculos com sua comunidade ouvindo os relatos de sua mãe e de outros sobreviventes. 

Há três anos, ouviu pela primeira vez de ex-soldados algumas das histórias que cresceu escutando. Foi apenas em 2022, com o lançamento do premiado documentário Tantura, do diretor israelense Alon Schwarz, que o passado do vilarejo voltou a vir à tona para o grande público – apesar da pequena repercussão no Brasil. 

Alguns dos soldados da milícia sionista, agora nonagenários, confirmaram enfim a participação nos massacres. Entre risadas, relembraram os assassinatos, torturas e estupros cometidos. “Simples assim. Se você matou, fez a coisa certa”, disse Hanoch Amit, ex-soldado da Brigada Alexandroni. Entre controvérsias e diferentes versões, aparece o nome de Moishe Barbalar, ex-soldado citado por ter jogado uma granada contra uma casa e estuprado uma jovem. 

Palestinos sobreviventes pediram a construção de um memorial no local. A administração local negou.

“Eu ouvia essa história contada pela minha mãe”, diz Jihan. “Um soldado escolheu uma menina de 16 anos e a estuprou; o tio dela, que tentou impedir, foi morto. Eu evitava pensar nisso. Quando os ouvi contar, lembrei imediatamente da história”, conta. 

Caminhando pela areia entre o fluxo intenso de banhistas, Jihan lembra que, ali, foram enfileiradas mulheres e crianças na manhã seguinte ao massacre. O ataque por terra e mar aconteceu às duas da manhã. Alguns homens jovens tentaram resistir, com armamentos frágeis e poucas balas. Foram rapidamente derrotados.

As milícias avançaram, entrando nas casas e assassinando a população rendida. “Nós enfileiramos os árabes e matamos um a um, sem motivo”, disse outro soldado em entrevista ao documentário. Após matarem a maioria dos homens, rendidos, os soldados roubaram as joias e pertences das mulheres enfileiradas na areia. 

Alguns homens, como um de seus tios, foram mantidos vivos com a missão de cavar as covas coletivas. “Meu tio virou um corpo e reconheceu seu tio. Com uma arma apontada para sua cabeça, um soldado perguntou se ele conhecia aquele homem. Ele disse que não, para continuar vivo”.

A única casa remanescente de Tantura: uma prova histórica. Foto: Leila Salim/Intercept Brasil.

Quem tem direito à memória são os colonos

Jihan nos leva até a ponta da praia, onde está a única casa remanescente de Tantura. Todas as outras foram demolidas. Perdido na paisagem, o casarão de pedras parcialmente derrubado aparece em algumas fotos de turistas nas redes sociais como “uma casa antiga”. É, na verdade, uma prova histórica da limpeza étnica que permitiu que Dor existisse como existe hoje. 

“Nós [sobreviventes e familiares] entramos com um pedido junto à administração local para a construção de um memorial para as vítimas do massacre aqui. De início, pensamos que isso seria entendido por um povo que passou por um genocídio e que lutou pelo memorial do Holocausto para relembrar a dor de seus antepassados e para que ninguém esqueça”, conta Jihan. 

“Achávamos que eles entenderiam que esse também é um direito do povo de Tantura. Mas é claro que foi uma ilusão. O pedido foi negado”. Em 2023, os pontos onde estão localizadas as covas coletivas foram identificados por investigação técnica de uma agência independente inglesa, a pedido de uma organização de direitos humanos palestina. A pesquisa durou um ano e meio.  

Mas, hoje, quem tem direito à memória são os colonos instalados no local menos de um mês após o massacre. Em 14 de junho de 1948, 63 pessoas foram levadas para lá pelo estado de Israel, criando o kibutz de Nasholim – onde um memorial para os soldados da Brigada Alexandroni foi erguido. 

Rashida Hassan faleceu em 2019, aos 89 anos, sem nunca ter retornado a Tantura. Queria manter a memória de seu vilarejo antes do massacre. Mas até o final de sua vida, pedia à sua filha que, em suas visitas, coletasse um pouco da água do mar e colocasse em uma garrafa, para que pudesse cheirá-la. 

Hoje uma das vozes mais proeminentes da luta por memória e justiça em Tantura, Jihan continua visitando o local frequentemente. Faz questão, também, de levar seus filhos. “Aqui, estou próxima da minha história. Conheço todas as pessoas que estão enterradas aqui, mesmo nunca tendo as visto. Está dentro de mim, enraizado no meu coração e em minha memória”. 

A visita a Tantura com Jihan Sirhan foi organizada pelo Badil Resource Center em julho de 2025. A entrevista exclusiva para o Intercept com Jihan Sarhan foi traduzida por Ruayda Rabah.

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