Retiro religioso transforma adolescentes em ‘soldados de Cristo’ com réplicas de fuzis

Fé, fuzil e política

Retiro religioso transforma adolescentes em ‘soldados de Cristo’ com réplicas de fuzis


O tema da reportagem de hoje nasce de um gesto que reforça o espírito desta newsletter: a colaboração ativa dos leitores. Logo na primeira edição de Cartas Marcadas, recebi uma dica sobre um fenômeno religioso-militarizado no Espírito Santo. Foi a fagulha que acendeu a investigação que agora compartilho com você.

Por sinal, a apuração dialoga com a edição da semana passada, em que abordei os riscos de uma radicalização violenta no bolsonarismo. Se naquele momento a discussão era sobre convocações online para violência nas ruas, agora o foco são experiências presenciais que misturam fé, militarismo e jovens – e, sim, com forte viés político.

A reportagem também se conecta a um esforço investigativo maior, do qual faz parte a série de reportagens que o nosso jornalista Gilberto Nascimento tem publicado no Intercept Brasil. Sua última publicação, sobre os planos da Igreja Universal para as eleições, expõe a dimensão cada vez mais política de setores religiosos.

A história que contamos hoje importa porque mostra como práticas militares e religiosas estão sendo usadas para moldar a formação de jovens, naturalizando armas, disciplina de quartel e uma visão política excludente sob o manto da fé. Não é apenas um acampamento excêntrico, mas de um espaço onde fé, violência simbólica e ideologia se encontram — com potenciais impactos sociais e políticos muito além dos muros da igreja.

Por fim, é uma alegria dividir este espaço mais uma vez com o trabalho do repórter Thalys Alcântara, autor do material que você vai ler a seguir. Ele mergulhou nas imagens, nas falas e documentos do Retiro Sobreviventes, um evento que transforma adolescentes em “soldados de Cristo” empunhando réplicas de fuzis. Vale demais sua leitura.


‘Deus acima de tudo’

Jovens em fila repetem palavras de ordem enquanto empunham réplicas de fuzis. Parece a cena de um treinamento para um batalhão especial, no estilo do Bope. Mas o grito de um dos instrutores dá uma dica sobre o caráter do evento. “Deus acima de tudo!”, diz o homem. 

A cena aparece em um dos vídeos de divulgação do Retiro Sobreviventes, uma nova modalidade de acampamento religioso organizada pela Igreja da Família, uma derivada da Igreja Batista em Marataízes, no litoral sul do Espírito Santo.

O pastor e ex-militar Leandro Saldanha é o “comandante” dos Sobreviventes, que ele define como “uma vivência militar e uma experiência com Deus”. 

No site para a compra do ingresso da próxima edição do retiro, marcada para o último final de semana de setembro, a descrição do evento fala de “uma experiência intensa e desafiadora, projetada para testar os limites físicos, emocionais e espirituais dos participantes”. Entre as atividades descritas, estão desafios de resistência. 

Imagens das últimas edições mostram atividades como escalada em corda, rastejo militar, abdominais e marcha em terreno adverso. Alguns dos participantes são filmados deitados exaustos e ofegantes, no contexto dessas provas.

O retiro acontece desde 2022 e lembra muito o crescente movimento cristão voltado para homens chamado Legendários, que também é promovido pela igreja do pastor Saldanha.

Fuzil e oração

Uma particularidade impossível de ignorar nas dezenas de fotos e vídeos da divulgação do Retiro Sobreviventes é a presença constante de réplicas de armas de fogo durante as atividades militares religiosas. As imagens mostram jovens segurando “fuzis” e outras réplicas em filas, durante caminhadas no meio da mata, ou até em momentos de louvor e oração.

Imagem de divulgação do evento publicada nas redes sociais pela organização | Reprodução/Instagram

A Igreja da Família nos garantiu que não utiliza armas de fogo reais, mas não informou se os armamentos são impressões 3D ou armas de airsoft, réplicas de armas de fogo que disparam projéteis não letais de plástico. Especialistas ouvidos pelo Intercept Brasil explicaram que esses tipos de réplicas são muito parecidas com armas de fogo reais e a diferenciação demandaria uma análise presencial.

A compra de réplicas de airsoft é permitida apenas para maiores de 18 anos no Brasil. Esses equipamentos chegam ao consumidor com uma ponta na cor laranja, que serve para distingui-los de armas de fogo reais. No entanto, muitos compradores acabam removendo essa marca ou pintando-a, com o objetivo de tornar a réplica mais realista. Segundo o consultor sênior do Instituto Sou da Paz, Bruno Langeani, não há punição específica prevista para esse tipo de alteração.

“Este modelo de acampamento militarizado para crianças e adolescentes preocupa não apenas pela estrutura inspirada em práticas militares, mas porque indica possível desrespeito a direitos garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – como a proibição de acesso a armas e o direito à saúde e à integridade física e psicológica”, avalia Langeani.

Participantes do retiro narram uma intensa experiência espiritual e usam uma linguagem que mistura o militarismo e a religião. As imagens das últimas edições do evento mostram jovens prostrados após as atividades físicas promovidas pelo pastor e provas de resistência em que instrutores do acampamento gritam para os participantes, no estilo da pressão psicológica que acontece em treinamentos militares.

Jovem prostrada após ser submetida aos exercícios do retiro | Reprodução/Instagram

“Nenhuma dor física pode se comparar com a alegria da felicidade em Cristo!”, escreveu um integrante do movimento nas redes sociais. “O Sobreviventes é descobrir que se pode chegar a 100% da sua força física para auxiliar sua vida espiritual”, apontou outra participante.

Para Langeani, a propaganda de esgotamento físico promovida pelo evento religioso pode significar um risco para os participantes.

“Em diversos vídeos de divulgação do programa, há uma exibição quase orgulhosa de crianças e adolescentes caídos ao chão, à beira da exaustão física, o que levanta sérias dúvidas sobre os limites dessa metodologia e os riscos de naturalizar a exposição de menores a práticas violentas e inadequadas para sua faixa etária”.

De fato, os instrutores do evento estimulam a relação entre o limite do corpo e o espiritual. “Por que é pra machucar mesmo, o meu corpo está vibrando com vocês, a minha alma eu nem sei onde está mais”, diz o áudio de um instrutor em um dos vídeos de divulgação do Sobreviventes.

O mote do pastor e comandante Saldanha, repetido em vídeo e escrito na divulgação do retiro, é: “Entreguem as vossas almas, porque os vossos corpos me pertencem”.

Missão: conquista da cidade

Leandro Saldanha foi ordenado pastor pela Igreja Batista em 2006. Antes disso, serviu sete anos no Exército Brasileiro, onde chegou à patente de sargento. Ele pediu o desligamento do serviço militar em 2002 para se dedicar a vida religiosa.

“Militar, apesar de na reserva, mas o sangue pulsando pelo militarismo”, explicou Saldanha em entrevista ao programa Um Podcast, em setembro de 2021. Nos últimos anos, Saldanha foi responsável por promover uma transformação radical na centenária Primeira Igreja Batista de Barra do Itapemirim, uma antiga vila de pescadores que se tornou bairro de Marataízes. 

O antigo formato de liturgia protestante deu espaço para um estilo mais jovial, lembrando a aparência de casas de show, com as paredes internas pintadas de preto, uso de jogo de luzes e painel de led. O nome da congregação mudou para Igreja da Família. 

Inicialmente, essa mudança no estilo da igreja gerou embates com antigos integrantes da unidade religiosa que discordavam do pastor. Saldanha explica no podcast que é motivado por uma visão com o objetivo final de “conquista da cidade”. Em resposta ao Intercept, a congregação escreveu em mensagem que essa visão de conquista significa ganhar a cidade de Marataízes para Jesus. “Toda igreja tem como visão expandir e difundir o evangelho na terra”.

É neste cenário que nasce o projeto religioso militar Retiro Sobreviventes, em 2022. A ligação com as Forças Armadas não é apenas simbólica. Em fotos da última edição do evento, em março de 2025, é possível identificar, estendida entre árvores, uma bandeira do “Pelotão de Operações Especiais de Vila Velha – ES”, unidade militar de operações especiais do Exército cujo símbolo é uma caveira cravada por uma espada. O símbolo do retiro religioso é uma caveira cravada por uma cruz.

A caveira representa um importante simbolismo nos cursos rigorosos de formação do Comando de Operações Especiais do Exército, que inspiraram modelos parecidos em outras forças policiais, sendo o mais conhecido deles o Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope, vinculado a polícias militares. No entanto, hoje em dia, formações semelhantes já acontecem até entre guardas municipais

Em nota, a Seção de Comunicação Social do Comando Militar do Leste, CML, informou que não possui qualquer relação com o evento promovido pela Igreja da Família e que o pastor Saldanha não possui mais vínculo com o Exército. Além disso, o Comando Militar pontuou que ainda não há regulamentação sobre o uso  de símbolos oficiais no nível Pelotão, como é o caso da bandeira exposta no retiro religioso.

“O CML reitera seu compromisso com a legalidade, o respeito à legislação, incluindo os princípios constitucionais que regem a laicidade do Estado”, escreveu na nota.

‘Esquerda é portão do inferno’

A duração do retiro é de um final de semana e acontece em áreas mais isoladas da cidade. A edição do evento de março de 2024, por exemplo, aconteceu em uma fazenda na zona rural do município capixaba de Vargem Alta, a 100 km da sede da igreja. O valor da inscrição para a próxima edição é de R$ 220.

Um aspecto abertamente político do retiro religioso não é evidenciado nas publicações de divulgação, mas o pastor Saldanha deixa claro seu ponto de vista nas redes sociais. 

“Quando eu digo que a esquerda é o portão do inferno na terra, tem gente que fica com raiva de mim!”, escreveu em fevereiro de 2022, quando a Justiça da Colômbia descriminalizou o aborto até a 24ª semana de gravidez. 

Um dos integrantes do movimento religioso, identificado nas redes sociais como JotaVê Moreno, é também integrante de um clube de airsoft chamado Mossad, em referência ao serviço de espionagem israelense. 

Em uma das fotos de divulgação do grupo, JotaVê e outros dois colegas exibem itens militares enquanto ostentam uma bandeira de Israel. “O Mossad, a maior potência de Israel”, diz a legenda da imagem escrita em hebraico.

A mais recente iniciativa do pastor Saldanha é o Colégio da Família, inaugurado em fevereiro deste ano. A unidade de ensino é voltada para crianças de 2 a 5 anos. Em entrevista para a rádio Litorânea FM, o pastor explicou que decidiu abrir a escola após se sentir incomodado diante de ideologias e conceitos que estariam sendo difundidos nas escolas não religiosas. 

‘Princípios do reino’

Procurado pelo Intercept, o pastor Saldanha escreveu mensagem dizendo que está de férias e convidou a reportagem para participar da próxima edição do retiro, em setembro. “Vem participar que te respondo!”, respondeu.

Após entrarmos em contato, a Igreja da Família nos escreveu via WhatsApp que o intuito da congregação não é prestar posicionamento ou entrevistas para veículos de jornais, mas respondeu parte dos questionamentos que fizemos. 

“Carregamos os princípios do Reino e temos a visão de ganhar a cidade de Marataízes para Jesus. Toda igreja tem como visão expandir e difundir o evangelho na terra. Como igreja carregamos princípios! Uma vez que é proibido o uso de armas de fogo e seu acesso é restrito. Não faz o menor sentido usarmos armas reais”, explicou.

Saldanha e a congregação não responderam aos meus questionamentos específicos sobre medidas de segurança e saúde, o uso de símbolos do Exército e a ligação com o clube de airsoft Mossad.

Apesar de se apresentar como Igreja da Família, em alguns momentos a atual gestão da congregação ainda  utiliza o nome de Primeira Igreja Batista da Barra de Itapemirim, ou a sigla PIBBI. O Intercept entrou em contato com a Convenção Batista Brasileira, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.

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