Cecília Olliveira

Charlie Kirk: Quando a mídia transforma extremista em mártir

Cobertura da grande imprensa brasileira, com seu desconhecimento sobre os EUA e sua recusa em nomear supremacistas, normaliza a extrema direita.

Homem protesta contra vigília para Charlie Kirk em Boston, nos EUA.

Homem protesta contra vigília para Charlie Kirk em Boston, nos EUA.

Ativista conservador, “fundador da organização conservadora“, “influenciador trumpista”, “líder da direita cristã pró-Trump”. É assim que a imprensa brasileira tem coberto a morte Charlie Kirk, um radical que fez carreira propagando ideias nazistas, racistas e violência extrema, como televisionar execuções sumárias para “fins educativos”.

Quase uma semana após o assassinato de Charlie Kirk, as manchetes até agora são reveladoras sobre a maneira como os principais grupos de mídia do país se esforçam para não rotular o extremista como extrema direita.

“Há um processo de normalização da extrema-direita no caso do Charlie Kirk e, eu acredito que, de alguma forma, esse processo é condizente com o que acontece no Brasil”, diz Afonso de Albuquerque, professor do curso de Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Disputas e Soberania Informacional, avalia a cobertura da mídia brasileira sobre o caso.

“Charlie Kirk era um publicista extremamente racista, que elogiava atentados contra políticos de esquerda. Apelava para a violência como retórica e para o discurso de ódio o tempo todo. Ele cultivava valores e atitudes que alimentaram o seu próprio assassinato” disse ao Intercept João Feres Júnior, professor de ciência política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e coordenador do Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública. Para ele, a mídia “omitir isso é uma falha grave na cobertura, muito grave”. “Basta dar dois cliques no Google que você acha referência”.

A cobertura do Globo, Folha e Estadão – os maiores jornais do país – se aproxima daqueles veículos que tem uma linha editorial clara de direita, como Brasil Paralelo, Gazeta do Povo e Jovem Pan, quando não dão nome aos bois em nome de uma pretensa isenção – que não existe.

Para Albuquerque, da UFF, a cobertura internacional da grande mídia brasileira, além de muito superficial, é “pobre do ponto de vista de inteligência e análise”. 

Ele acredita que a cobertura do assassinato de Charlie Kirk expõe dois elementos cruciais que afetam em grande medida veículos tradicionais no país. Primeiro, a falta de conhecimento sobre a cena política dos Estados Unidos. Segundo, o fato de que, diante da morte, a grande mídia tende a adotar um conservadorismo de atitude. Então, o indivíduo que em vida era nazista vira ‘conservador’. A imprensa tende a evitar se posicionar de maneira mais polêmica.

O que está em curso hoje é uma lógica de analisar por comparação ao extremo absoluto.

Nesse sentido, a mídia hegemônica no Brasil se aproxima da norte-americana. “A grande mídia, que eles chamam de legacy media, em inglês, tem suavizado a extrema direita, normalizado. Na verdade, tratado ela como uma contendora que joga no jogo da democracia. O que não é sempre o caso”, diz Feres.

E por que isso importa? Este tipo de cobertura – incompleta e rasa – contribui muito para um abrandamento do real perfil de Kirk e seu legado. A relutância em tratá-lo como um ator da extrema direita norte-americana normaliza o extremismo e dilui as fronteiras entre agentes políticos apenas conservadores e extremistas anti-democráticos.

A normalização, segundo Ruth Wodak, em The Politics of Fear: The Shameless Normalization of Far-Right Discourse, é o processo pelo qual a imprensa e a política mainstream começam a naturalizar agendas e personagens da extrema direita. Albuquerque cita a Europa como exemplo desse processo, onde partidos da direita moderada estão adotando a agenda anti-imigrante da extrema direita.

Diante disso, o que está em jogo é que a mídia brasileira, em um alinhamento automático às mídias norte-americanas, tem se posicionado na defesa de que o Kirk tinha o direito de dizer o que dizia a pretexto de uma suposta liberdade de expressão. Mas essa liberdade, por não ser absoluta –pelo menos no Brasil – não dá o direito do indivíduo promover discursos de ódio e agressão. 

Para Albuquerque, os grandes jornais brasileiros apenas reproduzem o ponto de vista predominante nos Estados Unidos, tratando esse país como uma espécie de sol e orbitando ao seu redor. Ele aponta como uma consequência direta da forma como esses veículos foram constituídos, tanto empresarial quanto historicamente, dentro de uma perspectiva que vê os Estados Unidos como modelo a ser seguido pelo Brasil.

Logo após o atentado contra Kirk começaram a circular vídeos destacando sua família, turbinados pelos algoritmos das redes sociais que privilegiam conteúdos que geram reações emocionais intensas. 

O objetivo era claro: desconstruir sua figura política e culpabilizar a “extrema esquerda” pela morte de um “homem de família”, fomentando um discurso polarizante do nós contra eles. Mesmo discurso que vem sendo adotado por parlamentares e influencers de direita e extrema direita no Brasil.

Albuquerque destaca que esse talvez seja o elemento central do episódio: como a narrativa trumpista se aproveitou do fato para jogar a culpa na esquerda, acirrando uma crise política já em curso.

À frente do Turning Point USA, organização que fundou, Kirk defendia uma visão nacionalista cristã dos Estados Unidos que é um dos pilares de sustentação da base do ‘Make America Great Again’, o MAGA. 

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O Southern Poverty Law Center, ONG dos EUA que atua contra grupos supremacistas, descreveu a organização como uma instituição que “manipula sentimentos de insegurança e ansiedade para gerar indignação e mobilizar apoio com o objetivo de restaurar e preservar uma ordem social cristã, branca e patriarcal.” Ou seja, descreveu o conceito de nacionalismo cristão supremacista.

Embora tenha iniciado sua trajetória no setor mais moderado do conservadorismo, Kirk foi adotando posições cada vez mais radicais à medida que sua influência crescia, sobretudo entre jovens universitários. Após sua morte, setores da extrema direita chegaram a interpretar o episódio como o início de uma guerra.

No rastro do atentado, muitos exaltaram a herança política deixada por Kirk, frequentemente destacando sua habilidade estratégica, mas sem considerar de forma crítica os efeitos políticos de seu discurso. Sua atuação é considerada central na ascensão de jovens nacionalistas brancos e cristãos. 

Kirk ficou conhecido por participar de debates em campi universitários, estratégia que lhe dava visibilidade e autoridade, com pessoas jovens e em formação. Mas seu compromisso principal estava no projeto político trumpista de restringir a participação democrática de pessoas que não fossem brancas, cristãs e seguissem sua estrita agenda. 

Ao mesmo tempo, também usava a Turning Point USA, que reúne grupos conservadores estudantis, para dialogar com autoridades da administração. 

Guerra à esquerda: a onda de violência política nos EUA

A escritora e pesquisadora Natasha Lennard criticou declarações de parlamentares de diferentes espectros — inclusive Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez — que insistem em afirmar que “a violência política não tem espaço no país”. Para ela, essa retórica nega a realidade e ignora que a história norte-americana está marcada por massacres e violência.

Lennard lembrou que momentos de forte impacto midiático são frequentemente usados para deslocar responsabilidades e apontar apenas um setor como origem da violência: a esquerda. No entanto, os números mostram que a grande maioria dos ataques violentos com motivação política continua sendo praticada por integrantes da extrema direita, quase todos homens. Apesar das tentativas de inverter essa narrativa, o dado permanece incontestável.

A morte de Kirk, inclsuive, é parte de uma onda de violência política sem precedentes nos EUA: houve mais de 100 casos nos últimos 12 meses, com quase 50 mortes. Dentre os casos mais graves está o assassinato da presidente da Câmara de deputados de Minnesota, Melissa Hortman, e de seu marido em junho. Houve também o incêndio criminoso na casa do governador da Pensilvânia, Josh Shapiro; a invasão da casa da ex-presidente da Câmara, Nancy Pelosi; e o atentado contra Donald Trump durante a última campanha eleitoral.

Após o assassinato de Kirk, cresceu a preocupação sobre os efeitos que o episódio pode ter na escalada da violência política nos Estados Unidos. 

A ativista extremista Laura Loomer, por exemplo, chegou a convocar abertamente ataques contra qualquer pessoa ou grupo identificado como de esquerda. Estudantes negros começaram a receber ameaças imediatamente após o assassinato. Isso, antes de saberem que o assassino é de família religiosa, branco e criado em família republicana e apoiadora de Trump.

A narrativa ganhou fôlego com declarações de Trump, que associou o episódio a “terrorismo” e analistas alertam que esse movimento representa um momento de grande perigo, sinalizando a possibilidade de uma nova onda de repressão política legitimada por lideranças da direita trumpista.

‘Se o Bolsonaro ameaçasse quebrar a boca de uma jornalista, o Globo e a Folha relativizariam.’

Logo após a confirmação da morte de Charlie Kirk, figuras influentes da direita norte-americana foram às redes sociais para declarar guerra à esquerda, mesmo sem haver, naquele momento, informações sobre suspeito ou motivação do crime. Poucas horas depois, Donald Trump divulgou um vídeo reforçando esse discurso, prometendo que sua futura administração miraria a chamada “esquerda radical” e as organizações a ela ligadas.

Isso ecoa no Brasil. Jornais brasileiros como Gazeta do Povo vem chamando de “extremistas” quem fez piada com a morte do verdadeiro extremista, em alinhamento com políticos de extrema direita. Não é muito diferente na cobertura de jornais com mais prestígio, como o Estadão, que repercutiu acriticamente em um texto copiado do New York Times, que “assassino de Charlie Kirk seguia ideologia ‘esquerdista’ e havia se ‘radicalizado’”, repetindo palavras do governador de Utah, estado onde Kirk foi morto. O mesmo texto diz que o governador “não ofereceu detalhes que fundamentassem sua avaliação das opiniões do suspeito”. 

O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL mineiro, postou no X: “seja a extrema-direita que eles tanto tem medo”, em uma imagem que usa a estética extremista, com a ilustração do “clown pepe”, uma variante do cartoon Pepe the Frog, adotado como identidade de comunicação pelos chamados Groypers, uma dissidência dentro da alt-right, que, entre outras alegações nega o Holocausto e prega a supremacia do homem branco estadounidense.

Albuquerque avalia que o que está em curso hoje é uma lógica de analisar por comparação ao extremo absoluto. Assim, quase todos parecem moderados. É um engano perigoso, que desloca o debate público para a direita e rebaixa os limites do que é aceitável.

O acadêmico lembra que a relativização de posições da extrema direita por parte da mídia brasileira não é exatamente uma novidade. Ele conta que houve, durante o governo Bolsonaro, uma construção de um falso paralelismo entre o então presidente e os governos do PT. “Se o Bolsonaro ameaçasse quebrar a boca de uma jornalista, o Globo e a Folha relativizariam e diriam que o Lula também tinha uma relação hostil com a imprensa”, exemplifica. Mesmo sem nunca ter feito este tipo de ameaça de violência física.

O episódio levou parte da direita – e em certa medida, da imprensa – a tratar Kirk como mártir, uma escolha de palavras carregada de implicações políticas e uma retórica que foi rapidamente convertida em campanha, responsabilizando genericamente todo o campo progressista. 

Diante deste cenário, a imprensa não pode usar eufemismos para descrever os fatos. As pessoas que defendem extermínio de opositores e endossam ideias nazistas e violentas não podem ser renomeadas de “influenciadores” ou meros “ativistas”. Cabe aos jornalistas não servirem de ferramenta para a reembalagem de mensagens extremistas e totalitárias – que pregam, inclusive, seu fim. 

2026 já começou, e as elites querem o caos.

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Enquanto isso, a grande mídia bancada pelos mesmos financiadores do golpe tenta espalhar o caos e vender a pauta da anistia, juntamente com Tarcísio, Nikolas Ferreira, Hugo Motta e os engravatados da Faria Lima.

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