Na semana passada, você deve ter acompanhado as notícias sobre o nascimento da federação União Progressista, a nova maior força política do país. Os números são impressionantes: 109 deputados federais, 15 senadores, seis governadores e mais de 1,3 mil prefeitos.
A federação é fruto da fusão entre União Brasil e Progressistas, e já chega com uma promessa central: derrotar Lula em 2026. O governador de Goiás, Ronaldo Caiado, não esconde que quer ser o candidato desse mega-bloco e, na primeira convenção, cobrou que a legenda tenha “lado, rumo e posição clara”.
Na imprensa tradicional, Caiado aparece muitas vezes embalado como um “moderado”, uma alternativa menos extremada ao bolsonarismo raiz. Mas basta olhar para Goiás para perceber que essa moderação é de fachada.
Durante seu governo, a polícia goiana matou mais de três mil pessoas em seis anos, uma política de segurança pública que premia execuções, estimula a letalidade policial e, como você vai descobrir agora, até atrapalha investigações da Polícia Federal contra o crime organizado.
Na edição desta semana, convidei o brilhante repórter Thalys Alcântara, meu colega no Intercept Brasil, para contar a vocês uma boa história sobre o governador goiano. Caiado pode até querer o lugar de Bolsonaro como líder nacional da extrema direita, mas carrega consigo uma marca inseparável: a política sanguinária que faz de Goiás um laboratório da barbárie. Vamos aos fatos.
É muito provável que você se lembre da execução do delator do PCC, Vinícius Gritzbach, no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, em novembro de 2024. O caso rapidamente se transformou em um escândalo nacional, principalmente por conta do envolvimento de policiais militares no crime.
Hoje vamos falar de um caso parecido, mas que não teve tanta repercussão. Porém, merece a sua atenção. O episódio ocorreu menos de dois anos antes, quando outro importante delator da facção paulista, o piloto de avião Felipe Ramos Morais, foi morto por uma dupla de policiais militares em uma chácara de Goiânia, frustrando investigações da Polícia Federal.
Ao contrário do caso de São Paulo, a morte do delator em Goiás não se transformou em escândalo. Muito pelo contrário. Os policiais responsáveis foram promovidos em julho deste ano, e um deles é homem de confiança do governador Ronaldo Caiado.
Estou me referindo ao recém-promovido coronel da Polícia Militar de Goiás, Edson Luis Souza Melo Rocha, conhecido como Edson Raiado, que é praticamente um garoto propaganda da política de Segurança Pública de Caiado.
Sem meias palavras, ele defende abertamente que a “polícia deve matar mais” e coleciona centenas de milhares de admiradores nas redes sociais. Detalhe: Raiado já foi chefe de segurança do governador, com quem afirma manter proximidade e trocar mensagens diretamente.
Caiado, Raiado e o delator
Raiado e seu colega, também recém-promovido a tenente-coronel, Renyson Castanheira Silva, invadiram uma chácara usada como oficina de aeronaves na capital goiana, próximo da divisa com Abadia de Goiás, no começo da tarde de 17 de fevereiro de 2023, após uma suposta denúncia anônima de tráfico de drogas.
Quando a dupla de policiais chegou no local, matou a tiros não só o piloto colaborador da Polícia Federal, Felipe, como também o mecânico de aeronaves Paulo Ricardo, de 37 anos, e o gerente de uma empresa do piloto, Nathan Moreira, de 21, que não tinham nenhum histórico de envolvimento com o mundo do crime. Não houve testemunhas diretas. Dos 15 tiros disparados pela dupla de PMs, 12 foram de Edson Raiado.
Os policiais dizem que atiraram porque foram recebidos a tiros. O inquérito sobre essas mortes na Polícia Civil chegou a ser arquivado, mas o caso foi reaberto pelo Ministério Público de Goiás em setembro do ano passado, após pedido de familiares das vítimas. Um novo laudo da Polícia Científica, mostrando que não havia sinais de pólvora no corpo de Felipe, o delator do PCC, foi considerado uma nova prova e a promotoria pediu várias novas complementações na apuração das mortes.
Felipe ajudou investigações policiais em pelo menos quatro casos de repercussão. Ele pilotava para importantes lideranças do PCC, além de transportar cocaína. Para se ter uma ideia, foi ele quem pilotou o helicóptero usado na execução dos traficantes Gegê do Mangue e Paca no Ceará em 2012, resultado de uma briga interna que é um marco histórico da facção.
O depoimento do piloto foi fundamental para entender a dinâmica desses assassinatos. Na época, o Ministério Público do Ceará pontuou que Felipe tinha apenas funções burocráticas dentro da organização criminosa, não sendo responsável diretamente por crimes violentos.
Além desse caso, a colaboração de Felipe auxiliou a PF nas operações Rei do Crime, sobre um esquema de lavagem de dinheiro com postos de combustível em São Paulo; Tempestade, que tinha como alvo o núcleo financeiro da facção; e a Laços de Família, sobre o transporte de drogas na fronteira entre o Paraguai e o Mato Grosso do Sul.
Em maio de 2021, Felipe deu uma entrevista para o colunista do Uol Josmar Jozino. O delator é descrito na reportagem como o “inimigo número um do PCC”. Na ocasião, o piloto declarou: “Tenho muito medo de morrer”.
Quando matou o piloto Felipe, Edson Raiado era chefe do Comando de Operações de Divisas, o COD, e publicou um vídeo oficial, com direito a trilha sonora de música eletrônica, se gabando de ter matado o delator do PCC. “Estamos falando aqui da cabeça do tráfico, não da ponta do tráfico”, declarou à imprensa na ocasião.
O COD apresentou 5,37 kgs de cocaína em cinco pacotes como sendo o material apreendido em um helicóptero que estava na chácara. O valor é irrisório perto das centenas de quilos que o piloto transportava para a facção criminosa. Além disso, a Polícia Civil não encontrou indícios de tráfico de drogas nos celulares dos três mortos, inclusive de Felipe. O inquérito aberto especificamente para apurar o crime de tráfico neste caso foi arquivado.
Caiado premia violência
Durante os seis primeiros anos do governo Caiado, a polícia goiana matou 3.138 pessoas, ficando atrás apenas de Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo.
Enquanto nesses estados a violência armada gera polêmica nacional, em Goiás, a morte em ações policiais é estimulada e premiada com quase nenhum questionamento – mesmo que isso signifique beneficiar o crime organizado e atrapalhar investigações da PF, como foi o caso da morte do piloto Felipe.
O coronel Edson Raiado ficou famoso em 2021 depois que se auto-intitulou o responsável pela morte de Lázaro Barbosa, um criminoso que fugiu da polícia durante 20 dias após assassinar uma família no Distrito Federal. Não é possível checar detalhes do caso, pois a Secretaria de Segurança de Goiás determinou o sigilo da operação.
Aproveitando a fama com a morte de Lázaro, Raiado foi candidato a deputado federal pelo PROS em 2022, mas não teve votos o suficiente. Ainda em 2022, ele lançou o livro “Contagem regressiva: a trajetória da caçada a Lázaro Barbosa”, em que ele dedica um capítulo inteiro ao líder Ronaldo Caiado.
Na época, Raiado era superintendente de Segurança do governador, cargo de confiança responsável por dar proteção ao chefe do Executivo, ao vice-governador e a seus familiares.
O oficial deixa claro em seu livro a proximidade com o governador. Ele diz que ligou para Caiado avisando do resultado da operação, assim que matou Lázaro, e que trocava mensagens diretamente com o governador durante as buscas pelo criminoso. “A função que exerço exige uma proximidade maior com o chefe do Executivo Estadual”.
Raiado teve uma ascensão meteórica dentro da Polícia Militar de Goiás desde o começo do governo Caiado. Foram três promoções no período de cinco anos, subindo da patente de capitão para coronel, a mais alta dentro da corporação.
Mesmo sendo alvo de investigações por envolvimento em ações controversas, o coronel não perdeu o prestígio junto ao governo goiano. Ganhou a chefia do Comando de Operações de Divisas, o COD, em 2023, até que foi transferido para o interior do estado no ano passado, depois que um confronto forjado de uma equipe do COD foi revelado por uma câmera no celular da vítima, que flagrou um policial plantando uma arma.
Ainda no ano passado, vazou na imprensa um vídeo dele com comandados cantando uma música que sugere a execução de bandidos e testemunhas.
“Matar o bandido, acender uma vela, botar ele na mala, eu vou pra estrada velha. Eu tenho uma notícia e um corpo baleado. E a testemunha aponta o caçador. Eu quero a testemunha na sexta-feira à tarde. Eu tô de viatura, caçando esse covarde. Se eu pego, atiro sem dó nem compaixão. Minha emoção é zero, o verdadeiro inferno”, dizia a letra da canção. Uma investigação no Ministério Público de Goiás foi aberta após reportagens.
Durante as eleições do ano passado, fez um bico como segurança do candidato derrotado à prefeitura de São Paulo, Pablo Marçal. De volta à administração pública, foi promovido a coronel e designado para o comando do Batalhão de Polícia Militar Rodoviário.
Caiado é pré-candidato ao Palácio do Planalto e sonha em herdar os votos de ser apadrinhado por Jair Bolsonaro, tendo como pauta principal a segurança pública. Sim, o governador que promove o PM responsável por matar um delator do PCC é o mesmo que apresentou um plano nacional de combate a facções criminosas em abril deste ano e que faz campanha contra a PEC da Segurança Pública proposta pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski.
Em nota, o Ministério Público de Goiás informou que o processo sobre a morte do ex-piloto continua tramitando, com diligências em andamento. “Como ele tramita sob segredo de Justiça, não é possível o fornecimento de outras informações”.
Entrei em contato com a Polícia Civil, com o coronel Edson Raiado e com Ronaldo Caiado, mas eles não responderam aos questionamentos até a publicação da newsletter.
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Há algumas semanas, pedi aqui indicação de personagens que vocês gostariam de ver por aqui. Ronaldo Caiado foi um deles. Por isso, agradeço demais a cada sugestão, crítica ou elogio que vocês enviam. Não consigo responder a todo mundo. Mas, a cada mensagem, vocês ajudam a moldar o que essa newsletter pretende ser: um espaço coletivo, atento e afiado, capaz de iluminar as zonas de sombra da política.
Seguimos juntos nessa tarefa de investigar, conectar os pontos e, principalmente, não deixar que a versão oficial da história seja a única registrada.
Até semana que vem,
Paulo Motoryn
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