Fabiana Moraes

Cristão, pai, marido, patriota. E assassino confesso

Nas redes sociais, o narcisismo, racismo e ódio aos pobres são engrenagens que se alimentam mutuamente. Não é preciso ser nada de verdade. Basta parecer.

Cristão, pai, marido, patriota. E assassino confesso

O empresário Renê da Silva Nogueira matou o gari Laudemir Santos. Depois, foi para a academia. A sequência — um homem tira a vida de outro e, em seguida, trabalha seus bíceps — é um retrato do tipo de subjetividade cruel que se fortalece, cada vez mais, na sociedade brasileira: corpo marombado, rosto harmonizado, moral atrofiada. Nogueira confessou o crime nesta terça-feira, 19 de agosto.

As imagens que circulam nas redes sociais mostram Renê com músculos enormes, pele esticada por interferências faciais, o rosto cuidadosamente editado para caber num padrão de “sucesso” que mistura força física, juventude artificial e autoestima inflada. Ao lado dessas características, nas redes, o assassino ainda fez questão de se melhor definir: “marido”, “pai”, “cristão” e “patriota”. 

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Está assim selado esse tipo que, para ele mesmo, está no mais alto posto da espécie humana. Quem não estiver, que saia da frente.

Confesso que, todas as vezes que li sobre o assassinato de Laudemir, não conseguia ver outra coisa, a não ser um vistoso monumento à estupidez, quando batia o olho nas fotografias do empresário.

Para mim, é a personificação do narcisismo como projeto de vida — e, aqui, como moldura de um crime. Não é o corpo como expressão de saúde, do cuidado, mas como símbolo de domínio: sobre si, sobre os outros, sobre quem ousa ocupar um espaço que o “vencedor” acha que não lhe pertence. Ocupar, por exemplo, o meio da rua. Atrapalhar, com um grande caminhão de lixo, a passagem do carro elétrico novinho em folha. Ousar dizer: “ei, você vai ter que esperar.”

Como assim, esse ser humano que se entende como superior vai esperar?

A decisão de ir malhar logo após matar não é apenas sinal de frieza, não é coisa de “monstro”. É coisa de ser humano mesmo. É a afirmação de poder e de controle, uma forma de dizer que nada, nem a morte de um outro ser humano, é capaz de interromper a rotina e o culto a si mesmo. É a vida organizada em torno do próprio eu, onde o outro — principalmente o outro pobre, negro, trabalhador braçal — existe apenas como obstáculo ou ameaça a ser eliminada.

René, como conta Marina Amaral, da Agência Pública, nesta newsletter, já havia atropelado e matado uma mulher que vivia em situação de rua. Já havia agredido companheiras. É um macho alfa cuja testosterona, acredita, o faz quase um deus. Como o macho alfa criminoso que há semanas desferiu 61 socos na namorada acuada dentro de um elevador. Juliana precisou passar por cirurgia para reconstruir o rosto.

Homens desprezíveis, covardes, criminosos.

O assassinato de Laudemir não se separa de um contexto mais amplo de racismo e ódio de classe. O gari é a figura pública daquilo que boa parte de quem vive no mundo filtrado e harmonizado prefere não ver: a mão que recolhe o lixo, o corpo que caminha no calor, a presença incômoda que lembra que a desigualdade não é abstração. 

Matar Laudemir (e atropelar a moradora de rua), nesse sentido, é também matar o símbolo. É reafirmar a hierarquia que permite que uns circulem armados de músculos, carros elétricos e advogados, enquanto outros sequer têm o direito de trabalhar sem serem alvejados. A hierarquia de quem precisa, para deixar bem claro que é melhor que todas as outras pessoas, que é “cristão, pai, marido e patriota”

Foda-se você se não é. Ou, na verdade, se não parece ser.

Nesse ambiente onde o próprio Congresso Nacional dá espectáculos de truculência, tipos como René investem no seguinte tripé da autopromoção: corpo sarado, bandeira nacional no perfil e citação bíblica no rodapé. Uma estética da virtude sem virtude alguma, onde fé e amor à pátria são apenas acessórios na vitrine pessoal. Quem quiser que acredite. 

As redes não criaram o narcisismo, o racismo ou o ódio de classe, mas deram a eles uma vitrine e um algoritmo.

Não sei se é impressão minha – me digam se é – mas tenho impressão que, cada vez mais, esse tipo vai deixando de convencer. O nível de ridículo e de violência os entregam, pouco a pouco.

Essa combinação é um produto típico do ecossistema das redes sociais, onde não é preciso ser nada de verdade — basta parecer. O “cristão” não precisa amar o próximo; o “patriota” não precisa respeitar a vida do conterrâneo; o “homem de sucesso” não precisa construir nada além da própria imagem.

(Já tivemos até humorista que era presidente – cargo conferido pelo próprio chefe do Executivo, lembram?)

O ambiente digital funciona como um palco em que se vendem versões higienizadas de si mesmo: a foto na academia, a selfie com a bandeira, a legenda com versículo bíblico. Coisa de gente que vai pro céu – ou de quem tem um carro elétrico novinho e não vai ficar sendo humilhado esperando um gari apanhar o lixo.

Tudo é cuidadosamente editado para compor a narrativa de vitória individual, de merecimento absoluto, de uma vida que supostamente prova o valor de quem a ostenta. Se você não conseguiu, o problema é seu. 

Mas, fora do enquadramento, longe das mãos-emoji em prece, há o desprezo por vidas vistas como descartáveis e a manutenção de um sistema onde o sucesso de uns depende da invisibilidade — ou da morte — de outros.

As redes não criaram o narcisismo, o racismo ou o ódio de classe, mas deram a eles uma vitrine e um algoritmo. Deram, também, dinheiro a muita gente – e as big techs são as maquinistas desse trem. Nessa vitrine, qualquer incoerência pode ser encoberta por um filtro: o empresário armado de músculos e cirurgias plásticas pode vestir a fantasia de cristão compassivo; o violento pode posar de patriota ordeiro. Os deputados federais mostram-se preocupados com a população enquanto na verdade fazem negócios com as gigantes de tecnologia, as mesmas que recebem muito dinheiro com vídeos mostrando crianças sendo sexualizadas.

 A lógica é simples: não importa quem você é, mas sim o quão bem você encena.

No fim, o sucesso que essas redes vendem é uma encenação de virtudes que não se sustentam no mundo real, mas, infelizmente atraem centenas, milhares e milhões de seguidores (o sucesso também eleitoral de Pablo Marçal não me deixa mentir). E, enquanto aplaudimos o hipócrita no palco digital, seguimos ignorando o corpo caído fora de cena. 

O culto à própria imagem (principalmente branca, jovem, esculpida), tão valorizado nas redes sociais, encontra aqui seu lado mais sombrio: quando o indivíduo não enxerga o outro como semelhante, mas como cenário ou ameaça. Narcisismo, egoísmo, racismo e ódio aos pobres não são desvios isolados — são engrenagens que se alimentam mutuamente.

Laudemir foi morto porque, para um estúpido, sua vida estava atrapalhando o tráfego.

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