Uma em cada três cidades brasileiras tem apenas uma mulher que foi eleita vereadora. O cenário nestes 1.629 municípios de todas as regiões reforça a supremacia masculina na política, o que reverbera tanto na presença em ambientes de poder quanto na tomada de decisões que afetam milhões de pessoas.
Levantamento feito pelo Intercept Brasil a partir de dados de 2024 do Tribunal Superior Eleitoral, o TSE, mostra que a maioria das únicas vereadoras eleitas é branca (55%), entre 35 e 49 anos de idade (50,3%), tem ensino superior completo (55,3%) e pertence a partidos de centro-direita (40,8%) e extrema direita (40%) – só 19,2% conquistaram o mandato por siglas de centro-esquerda ou esquerda.
Além dos 1.629 municípios com uma única vereadora, outros 757 não elegeram nenhuma mulher para o legislativo municipal em 2024 – ou seja, 42,8% das cidades brasileiras tiveram uma ou nenhuma vereadora eleita pelo voto popular. Os dados para o levantamento foram extraídos do portal de dados abertos do TSE em 4 de fevereiro deste ano.
Para Salete Maria da Silva, professora de Estudos de Gênero e Diversidade da Universidade Federal da Bahia, a UFBA, a precária participação feminina na política não só exclui um segmento da sociedade como reduz a qualidade da democracia.
“As mulheres tendem a pensar mais no outro, inclusive na formulação de políticas públicas. Tem uma ética que envolve a preocupação com a família, a natureza, as relações, a vizinhança”, afirma. Por isso, pondera, naturalizar a ausência de mulheres em cargos políticos é uma violência.
Mas essa violência também ocorre diante da presença feminina nos legislativos municipais. Aquelas que exercem ou exerceram um mandato como a única parlamentar mulher em uma Câmara de Vereadores relataram ao Intercept uma sensação que mistura a pressão de não poder errar com o peso da responsabilidade.
Segundo Silva, essas mulheres correm riscos maiores de sofrerem violência política de gênero e de ficarem em um dos dois extremos: invisibilização ou hiper exposição – condições que, de acordo com a especialista, podem levar à exaustão.
Camila Rosa, vereadora de Aparecida de Goiânia, em Goiás, pelo União Brasil, viveu na pele a hiper exposição. Ela foi a única mulher eleita em 2024, mas já havia exercido a maior parte do seu mandato anterior, entre 2021 e 2024, como a única mulher na Câmara.
Durante seu primeiro mandato, Camila Rosa teve o microfone cortado em uma sessão ordinária pelo presidente da Câmara, André Luis Carlos da Silva, do PL, em meio a um embate entre os dois. O episódio, em 2 de fevereiro de 2022, terminou em lágrimas e com Silva, segundo a vereadora, dizendo que ela iria chorar em dobro no dia seguinte.
A discussão começou após Silva ter lido uma postagem da vereadora que comemorava o retorno das sessões ordinárias da Câmara e falava da importância da mulher na política. O vereador falou ser contra as cotas para mulheres na política e que isso não fazia dele um machista. “Não é porque é mulher que tem que sair atropelando todo mundo, não”, disse.
Rosa respondeu que não havia dito que o presidente era contra cotas. “Se o senhor entendeu isso, a carapuça pode ter servido, porque o senhor sempre fala de caráter, de transparência, parece que o senhor tem algum problema com isso”, afirmou a parlamentar, quando foi subitamente interrompida por uma decisão do colega.
“Quer fazer circo aqui, você não vai fazer, não”, disse o presidente, enquanto Rosa tentava fazer ecoar suas palavras com o microfone desligado. Quando pôde continuar sua argumentação, a vereadora estava em lágrimas. “É isso o que fazem com mulheres na política”, lamentou.
À Polícia Civil, Silva afirmou que se sentiu ofendido pelas palavras da vereadora e teria feito a mesma coisa se ela fosse um homem. Também argumentou que o presidente da Câmara tem a prerrogativa de cortar o microfone sempre que for necessário.
Após o microfone ter sido desligado, de acordo com depoimentos dados à Polícia Civil, Silva teria dito à vereadora: “Amanhã, o show será melhor. Traz um lenço porque você vai chorar em dobro”.
‘Agora não pode ter uma discussão mais calorosa que a parlamentar, por ser feminina, vai começar a chorar’.
A sensação de humilhação pela fala interrompida em uma sessão transmitida ao vivo e o comentário de Silva com o microfone desligado fez com que a vereadora tivesse um pico de pressão. Ela precisou ser socorrida até uma unidade de pronto atendimento.
Após Rosa deixar a sessão, o presidente da Câmara voltou a falar do episódio: “Agora não pode ter uma discussão mais calorosa que a parlamentar, por ser feminina, vai começar a chorar”, afirmou.
O corte do microfone ganhou repercussão nacional – e com ela também vieram ataques de pessoas ligadas, segundo a vereadora, à direita conservadora. No ambiente de trabalho, Rosa conta que passou a ser evitada pelos colegas vereadores.
Ela chegou a denunciar o caso como violência política de gênero, crime previsto desde 2021 pela Lei nº 14.192, que criminaliza condutas capazes de “assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar” candidatas ou detentoras de mandatos por meio de menosprezo à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia, com o objetivo de dificultar ou impedir sua vida política.
No entanto, o caso foi arquivado pelo Tribunal Regional Eleitoral de Goiás, o TRE-GO, que considerou que as palavras de Silva não configuraram constrangimento ou humilhação à vereadora.
Perfil das eleitas reforça falta de diversidade, dizem especialistas
Das 1.629 mulheres eleitas como únicas vereadoras de suas cidades em 2024, quase 896 são brancas (55%) e 707 são negras ou pardas (43,4%). Mas este aparente equilíbrio nos legislativos com apenas uma mulher eleita muda quando se analisa os dados por região.
Há uma maioria absoluta de mulheres brancas no Sul (86%) e no Sudeste (64,7%), enquanto as pretas e pardas lideram no Norte (80%), no Nordeste (64%) e no Centro-Oeste (53%). As porcentagens condizem, de forma geral, com a composição racial das regiões brasileiras mapeadas pelo IBGE, já que no Sul e no Sudeste a maioria das mulheres é branca, enquanto, no restante, é negra. Porém, em todas as regiões, com exceção do Norte, a proporção de mulheres negras eleitas como única vereadora é inferior à proporção delas naquela população.
Há apenas cinco mulheres indígenas no grupo de 1.629. Elas legislam em municípios de menos de 15 mil habitantes nos estados de Pernambuco, Roraima, Minas Gerais e Maranhão. Outras 12 se identificaram como amarelas. Nove não informaram raça ao TSE.
LEIA TAMBÉM:
- Deputado Amauri Ribeiro faz ataques misóginos em série contra deputada em Goiás e ironiza ‘mimimi’ das mulheres
- Não há defesa da Amazônia sem defender mulheres como Marina Silva
- Mulheres governam Piauí e Ceará pela primeira vez – mas seus partidos querem tirá-las de cena
Salete Maria da Silva, da UFBA, avalia que, além de as mulheres com mandato serem minoria em relação aos homens, as que conseguem se eleger estão em uma posição de privilégio em relação às demais.
A maioria das únicas eleitas – 901 ou 55,3% – completou o ensino superior. Do restante, 511 têm o ensino médio completo (31,3%) e 66, o ensino fundamental (4%). Além disso, as únicas vereadoras do Brasil são majoritariamente casadas (58,2%).
Gênero, entretanto, não pode ser uma categoria unificada em razão das desigualdades e diferenças que existem dentro dela, ressalta a cientista política Thaís Zschieschang, co-fundadora do Delibera Brasil e doutora em psicologia social.
Ela destaca que existem inúmeros signos sociais que mulheres precisam corresponder para serem consideradas “ideais”, o que reflete na política eleitoral. Um exemplo, diz Thaís, é o estado civil. “A sociedade tende a respeitar e valorizar mais a mulher que está dentro do sistema tradicional de família”, analisa.
Ana Lúcia Ferreira Oliveira Meira, do PSD, única mulher na Câmara de Santo André, na Grande São Paulo, conta que, quando passava por um processo de divórcio do marido, escutou de colegas políticos que uma mulher separada “não pega bem na política”. “A vida pessoal [da mulher] chama muito mais atenção”, analisa a vereadora.
Santo André é a maior cidade em termos populacionais que tem apenas uma mulher eleita na Câmara de Vereadores. São 750 mil habitantes e 23 vereadores ativos. Ana Lúcia, que fez campanha usando o nome Dra. Ana Veterinária, é uma das 225 reeleitas no Brasil para um segundo mandato consecutivo como única vereadora.
Apesar de reconhecer que existem desvantagens para mulheres na política e que é necessário mais vereadoras no município, Ana diz que não sofre preconceito na Câmara de Santo André. Assim como outras vereadoras que atuam como únicas mulheres em suas cidades, ela conta que consegue os votos dos colegas para aprovação de pautas sobre direito das mulheres, mas que essa não costuma ser a prioridade da maioria deles.
“Não tem outra [mulher] para discutir, para realmente fazer ali coro junto comigo. Eles [colegas] têm até acho que uma boa vontade. Mas, se tivessem mais mulheres, eu acredito que teria mais força”, avalia.
Maioria das únicas vereadoras são de direita
O levantamento feito pelo Intercept também mostra que mulheres filiadas a partidos de centro-direita ou extrema direita predominam entre as únicas vereadoras de cidades brasileiras – elas representam 80,8% do total, ou seja, 1.316 de 1.629.
Do total, 651 (40%) pertencem a partidos de extrema direita – Agir, DC, Novo, PL, PMB, PP, PRD, PRTB, Republicanos ou União Brasil. Já 665 (40,8%) integram siglas de centro-direita, como MDB, PSD, Mobiliza, Podemos, PSDB e Solidariedade. O MDB é o partido que soma a maior quantidade de únicas vereadoras eleitas nos municípios, com 223 representantes, seguido pelo PP (184) e pelo PSD (129).
Com apenas 19,2% do total, partidos de centro-esquerda e esquerda têm 186 e 127 únicas vereadoras no Brasil, respectivamente. O partido com maior número de parlamentares neste cenário é o PT, que soma 114, seguido de PSB (104) e PDT (59).
‘[A presença da mulher na política] vai trazer uma visão diferente’.
A professora Salete Maria da Silva, da UFBA, destaca que as mulheres de siglas de direita não representam, necessariamente, uma posição conservadora ou reacionária. “É que, provavelmente, elas encontram na direita essa oportunidade, esse caminho”, pontua.
Em sua pesquisa, Thaís Zschieschang detectou que mulheres de grupos ligados à direita tendem a não enxergar a desigualdade de gênero como algo prioritário. Apesar disso, ela ressalta que a presença da mulher na política, independente do partido ou linha política, sempre é importante. “Ela vai trazer uma visão diferente, um pioneirismo, está abrindo portas para outras mulheres”, avalia.
Hoje, a Lei das Eleições prevê que 30% das candidaturas de partidos ou coligações sejam femininas. A regra, no entanto, tem sido alvo de fraudes. Nós mostramos em reportagem publicada em 2018, em colaboração com o site AzMina, que mulheres eram usadas por partidos como laranja só para preencher a cota.
A proposta de um novo Código Eleitoral, que tramita no Congresso e tem sido debatida no Senado, propõe alterar a regra dos 30% de candidaturas e estipular que 20% das cadeiras das casas legislativas sejam reservadas às mulheres. Há questionamentos, porém, se a mudança não seria um retrocesso na tentativa de aumentar a presença feminina.
Ataques e resistência em Canguçu
Por duas legislaturas seguidas, o município de Canguçu, no Rio Grande do Sul, teve apenas uma mulher eleita vereadora – ambas pelo PT. De 2021 a 2024, Iasmin Roloff ocupou o posto. Na eleição de 2024, a única mulher eleita foi a também petista Maica Tainara Soares Ferreira.
Foi durante o mandato de Roloff, entretanto, que a cidade de 50 mil habitantes ganhou projeção nacional após a petista ter sido escolhida para o cargo de 2º vice-presidente, em 2022, sob a justificativa de “embelezar a mesa [diretora do legislativo]”.
Roloff não havia se candidatado à posição – na verdade, buscava a presidência da Câmara –, mas seu nome foi sugerido durante a votação para a 2ª vice-presidência. “Vereadores, por favor, quando forem votar em mim, votem pela minha capacidade intelectual e não pela minha beleza”, disse Roloff após o fim da votação, em que acabou eleita ao cargo mesmo assim.
Depois desse episódio, a vereadora resolveu renunciar à 2ª vice-presidência. Ao Intercept Brasil, Roloff contou que ficou incrédula ao ouvir a proposta de fazer parte da mesa diretora e só se perguntava: “Isso realmente está acontecendo?”. Ao chegar em casa, diz ela, só queria chorar.
Mas aquela não foi a primeira vez que comentários sobre sua aparência haviam sido feitos por colegas parlamentares. No início da legislatura, Roloff disse que chegou a ouvir frases como: “Olha como nossa guria tá bonita hoje”, “olha o vestido dela”, “lá vem nossa guriazinha”.
Ao conquistar uma cadeira na Câmara, Roloff fazia parte de um grupo minoritário por ser de um partido de esquerda e também era a pessoa com mandato mais jovem do legislativo local, com 23 anos. Apenas 219 das únicas mulheres eleitas vereadoras em 2024 no Brasil – o equivalente a 13,5% do total – têm até 34 anos. A maioria tem entre 35 e 49 anos (817 ou 50,1%), seguido da faixa entre 50 a 64 (532 ou 32,6%).
Em uma cidade conservadora, Roloff almejava “mudar o mundo”. Mas ela afirma que a sensação durante seu mandato era de solidão. As microagressões do dia a dia fizeram com que demorasse certo tempo para perceber a violência que sofrera na votação da Mesa Diretora de 2021. Com a repercussão do caso, Roloff ainda passou a receber ataques, principalmente, nas redes sociais.
Ela conta que adoeceu durante o mandato e chegou a desenvolver fobia social, ansiedade, depressão e burnout. Mas não queria deixar isso transparecer para os colegas. “Isso poderia ser um ponto para eles me atacarem mais ainda”, reflete.
Thaís Zschieschang, co-fundadora do Delibera Brasil, explica que o papel social visto como feminino, as agressões diárias que vão se somando ao longo da vida e as dificuldades de chegar a um cargo político e se manter nele têm potencial de adoecer as mulheres. “É uma maratona muito comprida. É difícil que não se somatize em uma coisa mais profunda, seja emocional ou mesmo física”, afirma.
Além disso, analisa ela, a maioria das mulheres entra na política não por puro desejo de estar nesse ambiente, e sim em razão de defender causas sociais, o que gera um peso maior.
Trabalhar em coletivo, mesmo em grupos não eleitos, pode ajudar a formar uma rede de apoio e uma aliança que ajude as mulheres a transpor barreiras na política. Maica Tainara Soares Ferreira, do PT, que sucedeu Roloff como a única vereadora em Canguçu, tem seguido esse caminho.
Antes de eleita, Tainara atuou por 11 anos na ONG Centro de Integração de Entidades da Metade Sul, a CIEM, que integra os quilombos de Canguçu. Sua candidatura se deu após ela ter sido escolhida entre os seus para representá-los. “Eles entendiam que o meu nome, naquele momento, era o que mais agregaria”, conta.
A entrada na vida política, o partido em que isso aconteceria, a campanha eleitoral e até o mandato também foram uma construção coletiva – as decisões foram tomadas em conjunto com os quilombos. Mas isso não garantiu que ela não fosse alvo de ataques.
Tainara relata ao Intercept que seu nome não foi citado junto a outras autoridades durante um evento realizado na Câmara dos Vereadores para homenagear as mulheres. Ela atribui isso ao racismo. “Tem muitos que não querem aceitar que tem uma mulher negra vereadora”, diz. “Se eu não tivesse ido, talvez iam dizer que a única mulher na Câmara não apareceu”, completa.
A vereadora ainda diz ter medo que, ao menor deslize, gênero e raça sejam utilizados como justificativa para criticá-la. “Nós, enquanto pessoas negras, temos aquela coisa que a gente não pode errar. Não é permitido errar. Muitas vezes, se outras pessoas erram é natural, é normal. Mas nós temos que estar sempre provando que a gente consegue”, relata.
Apesar do peso de ser a única, Maica diz que seu mandato é “histórico” e que representa a “superação de séculos de invisibilidade e exclusão” para trazer força e resistência para o centro das decisões políticas.
O Intercept é sustentado por quem mais se beneficia do nosso jornalismo: o público.
É por isso que temos liberdade para investigar o que interessa à sociedade — e não aos anunciantes, empresas ou políticos. Não exibimos publicidade, não temos vínculos com partidos, não respondemos a acionistas. A nossa única responsabilidade é com quem nos financia: você.
Essa independência nos permite ir além do que costuma aparecer na imprensa tradicional. Apuramos o que opera nas sombras — os acordos entre grupos empresariais e operadores do poder que moldam o futuro do país longe dos palanques e das câmeras.
Nosso foco hoje é o impacto. Investigamos não apenas para informar, mas para gerar consequência. É isso que tem feito nossas reportagens provocarem reações institucionais, travarem retrocessos, pressionarem autoridades e colocarem temas fundamentais no centro do debate público.
Fazer esse jornalismo custa tempo, equipe, proteção jurídica e segurança digital. E ele só acontece porque milhares de pessoas escolhem financiar esse trabalho — mês após mês — com doações livres.
Se você acredita que a informação pode mudar o jogo, financie o jornalismo que investiga para gerar impacto.