‘Não sou obrigado a ficar ouvindo pastor’: PMs reagem à obrigação de frequentar templos da Universal

Tropa cooptada

‘Não sou obrigado a ficar ouvindo pastor’: PMs reagem à obrigação de frequentar templos da Universal


Cabo do 1º Batalhão da Polícia Militar em Santo Amaro, na zona sul de São Paulo, o PM Marco Aurélio Bellorio trabalhou uma noite inteira, das 18h30 às 7h. Ele conta que, de manhã, foi convocado por seu comandante para participar de uma reunião no templo da Igreja Universal do Reino de Deus, na avenida João Dias, no mesmo bairro. Bellorio, que é católico, se recusou.

Foi punido e respondeu a um procedimento disciplinar interno. Indignado, o PM entrou com ação na Vara do Juizado Especial de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, e pediu indenização por dano moral por ter sido obrigado a participar de reuniões no templo evangélico.

Ele alegava que houve abuso de poder e sua liberdade de crença não fora respeitada. A justiça negou o pedido em junho do ano passado, e acatou a justificativa do governo paulista de que a Igreja Universal apenas estaria cedendo o seu templo para a realização de reuniões e esses encontros não fariam referência a qualquer religião específica. O PM recorreu, mas sem sucesso.

A recusa de Marco Bellorio de comparecer ao templo da Universal ocorreu em janeiro de 2020. Agora, cinco anos depois, o processo disciplinar contra ele foi reaberto depois da derrota que ele teve na justiça. O PM, que continua na ativa, foi comunicado no início de julho.   

“O superior, quando quis me punir, perguntou quem eu achava que era. Eu falei que sou um cidadão, um funcionário público. E não sou obrigado a ficar ouvindo pastor. Eu vivo num estado democrático de direito. Apesar de ser militar, e ter de cumprir ordens, não quero ouvir. Aí, ele ficou me medindo”, contou Bellorio ao Intercept Brasil.   

O PM, de 44 anos, formado em Direito e em licenciatura em Educação Física e História, foi transferido para o trabalho na área administrativa. Ele diz ter sofrido “perseguição interna velada” por meio de várias transferências, mudanças de horários e ameaças de superiores por causa de suas posições. 

Em consequência, conta que teve problemas de saúde mental, desgaste emocional e crises de ansiedade e depressão. No momento, faz tratamento psiquiátrico, mas diz que a PM não admite os seus problemas de saúde.

Encontro com 2,5 mil policiais durou mais de 12 horas na sede da Universal em SP: Foto: divulgação/UFP.

Outros PMs vivem problemas parecidos na corporação. “Eu sou ateu e me recusei a participar dessas reuniões com pastores porque eu não concordo  com isso”, me disse o soldado Marcelo, que trabalha em um batalhão da PM na capital paulista.  

“Quando os pastores chegam lá no batalhão de manhã, eu saio. Vão sempre lá fazer um café da manhã. E, às vezes, tem reunião no templo. Mas eu não vou. Sei que não sou bem visto pelos meus superiores por isso. Tem colega que me chama de vermelho, de comunista, embora eu não fique manifestando minhas posições políticas. Todos sabem, porém, que eu sou ateu e de esquerda”, afirma Marcelo. “Eles levam uns livrinhos de religião lá, mas ninguém pega. Os policiais dizem que não serve pra nada isso, mas vão para não criar problema. Eu não vou porque não sou da religião e não quero”, completa.

Bellorio e Marcelo são dois dos PMs de São Paulo que ousaram desafiar a obrigatoriedade imposta por comandantes da Polícia Militar para que seus subordinados compareçam às reuniões em templos da Igreja Universal do Reino de Deus, liderada pelo bispo Edir Macedo. Esses encontros têm se tornado cada vez mais frequentes e já se espalham atualmente por todo o país.

O Intercept já denunciou a doutrinação de policiais por pastores da Universal em reportagem de maio de 2023. Soldados e cabos de batalhões inteiros da Polícia Militar, fardados e usando carros de suas corporações – muitas vezes em horário de serviço e outras em horários de folga – passam horas no interior de templos da Universal ouvindo pregação de pastores. Em geral, os encontros duram em torno de quatro a seis horas. Ao final, há uma oração e depois um discurso do comandante do batalhão.

A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo diz que a Polícia Militar e a Polícia Civil fazem “parcerias pontuais” para “utilização de espaços”, sem qualquer tipo de convênio formal com entidades religiosas. “Essas iniciativas são esporádicas, não envolvem nenhum custo ao erário ou vínculo ideológico, político ou religioso”, afirmou a secretaria, em nota.

“As forças policiais de São Paulo são instituições de estado que atuam em plena conformidade com a Constituição Federal e com a legislação estadual, respeitando integralmente a liberdade de crença e a diversidade religiosa dos milhares de profissionais que integram seus quadros”, argumenta.

Reportagem feita pelo Intercept em 2023 revela a dimensão do programa UFP.

O governo e a Secretaria de Segurança não responderam às perguntas do Intercept sobre os casos citados na reportagem. Também não explicaram se esses encontros poderiam ser realizados também em espaços cedidos eventualmente por uma religião de matriz africana, caso alguma delas oferecessem.  

“No meu batalhão, vi uma vez um colega que era da umbanda fazer um ritual dele no quartel, uma oferenda, e ser chamado para dar explicação ao comandante. Ele respondeu que se o pastor podia ir lá orar, ele também podia fazer a sua manifestação”, contou o PM Marcelo.

Em 2023, mapeamos mais de 70 encontros organizados pela igreja de Edir Macedo, por meio do projeto Universal nas Forças Policiais, o UFP, criado em 2018. 

Os eventos iam de pregação para as tropas fardadas nos templos a cafés da manhã, orações, bênçãos e participações de pastores em eventos de PMs, bombeiros, agentes da Polícia Federal, do Exército e da Aeronáutica em 24 estados do país, além do comparecimento de religiosos em solenidades de troca de comando com a cúpula das instituições. 

Por meio da Lei de Acesso à Informação, as secretarias de segurança e as polícias envolvidas nos eventos foram questionadas sobre o efetivo empregado, o que era feito nestes encontros e a existência de convênios e contratos com a Universal. Nem todos responderam – mas todos os retornos indicaram que as parcerias são feitas sem acordo formal, com respostas contraditórias sobre o conteúdo oferecido nessas reuniões.

De 2023 a 2025, o número de encontros desse tipo aumentou. Em fevereiro, 2,5 mil policiais militares de São Paulo estiveram em reunião na sede da Igreja Universal no bairro do Brás, região central de São Paulo, para escolher suas vagas de trabalho no início do ano e conhecer os locais nos quais foram classificados para atuar nas unidades militares na capital paulista e no interior. O encontro durou 12 horas, das 7h às 19h.

O pastor capelão Roni Negreiros, responsável pelo projeto UFP, falou sobre a necessidade de os policiais “renovarem a mente e equilibrar a emoção e a razão no seu dia a dia”. 

Citando a referência bíblica Romanos, capítulo 12, versículo dois, o pastor afirmou: “E não vos conformeis com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus”.

Inquérito para apurar doutrinação está em andamento no DF

O promotor Flávio Milhomem, da 3ª Promotoria da Justiça Militar do Distrito Federal, pediu, em fevereiro do ano passado, uma investigação sobre denúncia de que policiais militares estariam sendo obrigados a participar de um evento de formatura na sede da Universal na Asa Sul. 

O promotor solicitou, inclusive, o afastamento do tenente-coronel Rodrigo da Silva Abadio, que teria imposto a obrigação de comparecimento a cabos e soldados. Foi aberto um inquérito na Polícia Militar do DF, que ainda está em andamento, informou o Ministério Público do Distrito Federal.

Em São Paulo, o deputado estadual Paulo Reis, do PT, encaminhou logo após a denúncia do Intercept representações ao Ministério Público Federal e ao Ministério Público de São Paulo pedindo a apuração e providências sobre o deslocamento de PMs, em horário de serviço, aos templos da igreja. O Ministério Público Federal alegou que a competência para a apuração era da esfera estadual.

O MP de São Paulo arquivou o pedido ao não ver “irregularidade vislumbrada”, conforme informou ao deputado. Considerou também “suficiente” a justificativa da Polícia Militar paulista de que a Universal apenas cede o local para as reuniões com policiais “sem nenhuma vinculação com a prática religiosa”, como avaliou o procurador Saad Mazloum, do Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo, ao contrário do que dizem os policiais e ex-policiais.

‘Qualquer indivíduo, militar ou não, tem o direito de seguir a religião que quiser, mas o policial não pode frequentar cultos ou missas fardado e de forma organizada’.

Ex-PM e policial civil licenciado, o deputado Reis diz que a Universal, que já driblou a lei para contratar policiais militares como seguranças,  está sendo beneficiada com essa decisão do governo de realizar eventos da polícia em seus templos. 

“O estado é laico. Então, que o governo, ao menos, fizesse uma licitação, uma concorrência pública. E a igreja que ganhasse o certame, ficaria encarregada de cuidar dos policiais militares. É uma ironia, claro, mas o governo não tem de estar atrás de igrejas para poder fazer suas reuniões. O estado tem os seus estabelecimentos e equipamentos próprios”, observa o deputado.

 O ex-PM Leandro Prior, que integrou os quadros da Polícia Militar de São Paulo entre 2014 e 2021, é mais um crítico dos encontros religiosos em quartéis. Segundo ele, sempre houve nessas reuniões orações e menções bíblicas. 

“Isso não é de hoje e vem se aprimorando, cada vez é mais forte e se espalha pelo país. Os praças (policiais) não gostam, nunca gostaram. A igreja tenta passar a ideia de que é um culto ecumênico, como se todas as religiões fossem contempladas, mas não é nada disso. Ali, há uma captação da tropa”, critica Prior, atualmente coordenador da Setorial de Segurança Pública do Diretório Estadual do PT em São Paulo.

Encontro em Santos no final de 2024: Universal diz respeitar a Constituição. Foto: divulgação/UFP.

Prior, que diz ter pedido exoneração da PM ao alegar perseguição em razão de suas posições políticas e por ser homossexual, diz que a Universal consegue cooptar apenas alguns soldados, “muitos que têm problemas de depressão e ansiedade e estão perdidos, e chegam até a usar psicotrópicos e ter  tendências suicidas, como os próprios comandantes têm conhecimento”.

Para o cientista político Guaracy Mingardi, doutor pela USP e ex-investigador de polícia, é errado a PM obrigar ou instigar policiais a comparecer a reuniões em templos religiosos. “Qualquer indivíduo, militar ou não, tem o direito de seguir a religião que quiser, mas o policial não pode frequentar cultos ou missas fardado e de forma organizada, enquanto corporação. Se ele quiser ir, é problema dele. Mas ser obrigado a ir, pressionado, é completamente errado. Está totalmente fora de qualquer legislação, mesmo a militar. Ninguém é obrigado a ter uma religião específica”.  

“Quando um comando de companhia obriga o policial a ir, ele tem de ser processado. Não temos uma religião obrigatória no país. A ideia da Constituição foi exatamente essa”, diz. “O servidor público tem de estar aberto para qualquer coisa, pois a população tem várias crenças diferentes”.

Número de capelães evangélicos nas polícias é quase o mesmo de padres católicos no Brasil inteiro, segundo pastor

O projeto Universal nas Forças Policiais diz ter como objetivo a prestação de “assistência espiritual, social e de valorização humana aos integrantes das forças de segurança pública, Forças Armadas e seus familiares”, segundo Roni Negreiros, que é pastor e também major da Polícia Militar do Maranhão. Ele foi capelão militar no estado por 18 anos. A função de um capelão é dar apoio espiritual a militares em quartéis.

Negreiros afirma que a Universal conta hoje com 20 mil capelães no país. Para ter uma ideia da força, esse é quase o mesmo número de padres da Igreja Católica inteira no país – 22 mil, além de 500 bispos, segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a CNBB, entidade máxima dos católicos no Brasil. Ainda predominantes no país, os católicos representam 56,7% da população, enquanto os evangélicos somam 26,9%, segundo o último censo do IBGE. 

A CNBB  diz não saber quantos capelães católicos estão atualmente em atividade no país. Para citar um exemplo, as Forças Armadas no Brasil contam com 162 padres e 67 pastores atuando como capelães militares, de acordo com  a Força Aérea Brasileira. 

As ações da Universal desenvolvidas principalmente com as polícias militares foram ampliadas também para outras corporações, como a Polícia Civil, Polícia Federal, guardas metropolitanas, Exército e Aeronáutica em todo o país. 

Com essas outras forças de segurança, foram privilegiadas as visitas às sedes das corporações, cafés da manhã, participações em solenidades e trocas de comando e convites para policiais visitarem o Templo de Salomão, o monumental centro religioso construído pela Universal no Brás, em São Paulo. 

Agora, a estratégia pode estar se ampliando para outras denominações evangélicas, como a Assembleia de Deus do ministério Madureira.

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Foi depois de uma reunião no templo dessa igreja no bairro de Jardim Alvorada, em Itapecerica da Serra, na grande São Paulo, que um soldado da Polícia Militar de São Paulo morreu no dia 28 de maio

Ronaldo Venâncio da Silva, de 33 anos, sofreu um acidente de moto na rodovia Régis Bittencourt quando retornava para casa depois de trabalhar das 19h30 do dia anterior até às 7h30 do dia seguinte. Em seguida, ele teria sido obrigado a comparecer ao encontro na igreja. 

Ficou 18 horas à disposição da PM e, cansado e sem dormir, acabou sofrendo o acidente, denunciaram colegas. A Polícia Militar disse, em sua nota, “lamentar profundamente o ocorrido” e informou que uma sindicância aberta para apurar os fatos está em andamento.

Procurada, a Convenção Nacional das Assembleias de Deus Madureira não respondeu se, de fato, tem feito parcerias com instituições militares, como a Universal. A Igreja Universal também não respondeu às perguntas enviadas.

O seu futuro está sendo decidido longe dos palanques.

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