Cecília Olliveira

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Armar a guarda municipal do Rio de Janeiro será uma tragédia

A porta giratória entre legal e ilegal vai ganhar mais uma repartição. O crime agradece.

RIO DE JANEIRO (RJ), 01/04/2025 - VEREADORES/DISCUTEM/ARMAR/GUARDA CIVIL/RIO - Na Câmara dos Vereadores, no centro do Rio de Janeiro, vereadores analisam proposta de armamento da Guarda Municipal da capital carioca, nesta terça-feira (1). (Foto: Paulo Carneiro/Ato Press/Folhapress)

RIO DE JANEIRO (RJ), 01/04/2025 - VEREADORES/DISCUTEM/ARMAR/GUARDA CIVIL/RIO - Na Câmara dos Vereadores, no centro do Rio de Janeiro, vereadores analisam proposta de armamento da Guarda Municipal da capital carioca, nesta terça-feira (1). (Foto: Paulo Carneiro/Ato Press/Folhapress)
Vereadores do Rio de Janeiro analisam proposta de armamento da Guarda Municipal da capital fluminense. (Foto: Paulo Carneiro/Ato Press/Folhapress)

Você, morador do Rio de Janeiro, ou pessoa que me lê e gosta de visitar a cidade, saiba que escrevo esse texto em junho de 2025 para te contar sobre o Rio do futuro. A cidade que você conhece hoje certamente estará muito pior em cerca de uma década. E não é torcida contra. É o que os dados apontam. 

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O prefeito Eduardo Paes acaba de sancionar o Projeto de Lei Complementar 13-A/2025. É o PLC que trata da criação da divisão de elite da Guarda Municipal, a nova força de segurança armada da cidade. O projeto aprovado na Câmara de Vereadores é tão absurdo que fica difícil acreditar que ele foi votado por pessoas que vivem no Rio e que sabem a dimensão da nossa tragédia diária. Vivemos em uma cidade marcada por confrontos armados, com média de sete tiroteios por dia (dados de 2024). Ano passado foram 111 vítimas de balas perdidas e 26 crianças baleadas, recorde na série histórica do Instituto Fogo Cruzado (iniciada em 2016).

O Rio de Janeiro não é a cidade mais violenta do Brasil, mas possui uma peculiaridade que a diferencia de outras grandes cidades. Cerca de 20% de toda a área da capital do estado é controlada por algum grupo armado. 

Pode ser que os gestores públicos tenham optado pela criação de uma força municipal armada pensando na segurança da população. O problema é que as boas intenções não estão explicadas. O prefeito e os vereadores não deram nenhuma justificativa para essa decisão. Discursos vazios falando em caos e jogando com a sensação de insegurança não contam. O projeto não está baseado em um estudo técnico e o Rio de Janeiro sequer concluiu a elaboração do seu plano municipal de segurança pública. 

Os indicadores de roubo de rua e de total de roubos estão longe do pior momento na série histórica — embora ainda graves. Os dados são do Instituto de Segurança Pública e consideram um período de 10 anos, de janeiro de 2015 a dezembro de 2024. Veja o gráfico e note que objetivamente essa situação não piorou no ao longo da década. 

Fonte: Instituto de Segurança Pública.

Mesmo considerando roubo de celular, não ultrapassamos o pico da série histórica. Não há explosão de roubos ou mudança de cenário que justifique mais uma força fazendo patrulhamento nas ruas para além da polícia militar e agentes do programa segurança presente. 

Fonte: Instituto de Segurança Pública.

As intenções dos gestores não estão claras, e muito menos baseadas em evidências. Por isso sugerem estar meramente relacionadas às eleições que se aproximam. Quanto a isso, não há nenhuma novidade. Esta é a principal motivação da política de segurança do Rio de Janeiro e do Brasil há pelo menos 30 anos. O problema é que o PLC 13-A/2025 pode gerar consequências muito graves. 

Vou me concentrar em três pontos que considero críticos:

1. Em sua votação, a Câmara de Vereadores derrubou a obrigatoriedade do acautelamento das armas dos agentes ao fim do expediente. Isso quer dizer, que ao sair do trabalho, eles vão para casa ou para qualquer outro lugar portando armas e munições oferecidas pelo estado. 

Vou dar alguns dados do Fogo Cruzado para que você tenha dimensão do que isso significa. Em nossa série histórica constam 59 feminicídios ou tentativas de feminicídio. 10% foram cometidos por um agente de segurança. Você sabia que metade dos agentes de segurança baleados são vítimas fora do horário de serviço? Desses, 60% são baleados durante assalto. Tiroteios em bares e festas: 45% têm presença de agentes de segurança. 

2. O projeto prevê que o guarda municipal armado permaneça no cargo por até seis anos. Pelo uso da arma ele vai receber uma gratificação de R$ 10.283,48. Esse valor é o dobro do que ganha um soldado da PM recém formado. Além disso, podem entrar para essa força de elite ex-militares que trabalharam de maneira temporária nas Forças Armadas. Isso é um escárnio e é assustador que não se diga publicamente o óbvio: a guarda armada será praticamente uma pós-graduação para futuros funcionários da milícia e do tráfico. 

entrevistei armeiros do tráfico e sei como ex-militares são importantes nessa função. Com muita frequência vemos histórias sobre isso. Faltam dados porque os dados sobre segurança são escondidos da população, mas um levantamento do Exército de 2007 contabilizou 200 desertores somente da Brigada Paraquedista em 10 anos. Isso porque ex-militares possuem um conhecimento especializado que tem muito valor para grupos armados.

Coloque-se no lugar de um GM ou de um ex-militar dessa força de elite. Ele passará seis anos trabalhando armado, recebendo 10 mil reais a mais por isso. Depois, que tipo de trabalho ele vai encontrar para recompor sua remuneração? Ele simplesmente vai admitir deixar de portar arma após ter trabalhado se arriscando na rua e de ter vivido a experiência de poder que a arma oferece?

3. Diante de tudo isso, é um tapa na cara da população que o projeto não determine o uso de câmeras corporais pelos agentes armados. O que o projeto diz é que: “a Força Municipal implementará progressivamente a instalação de câmeras portáteis”. Atenção: progressivamente. Não sabemos como se dará essa progressão, nem quando todos os agentes deverão portar câmera. A população que já convive com uma das forças policiais mais letais do mundo conviverá também com uma guarda armada sem câmeras e sem clareza sobre como se dará o controle externo dos abusos de poder e da força por parte dos seus agentes — se é que haverá.

Os cariocas precisam saber o que está acontecendo hoje. Porque em alguns anos, quando abundarem histórias de desertores, “perda” ou “roubo” de armamentos e munições, abuso de uso da força e expansão de grupos armados, esses mesmo gestores públicos estarão apresentando novas soluções absurdas. 

A história da nossa política de segurança é exatamente a história desse PL: faltam transparência, diálogo com a sociedade, evidências que mostrem que a decisão é correta e qual o seu impacto. 

O armamento da guarda é provavelmente a pior ideia já tomada em segurança pública no Rio desde a “gratificação faroeste”, de 1995. Essa era uma bonificação salarial para policiais envolvidos em ocorrências com mortes. Sabe quem viu seus salários explodirem na época? Ronnie Lessa e Cláudio Oliveira, policiais que integravam a PATAMO 500, um grupo conhecido pelo terror que causava na cidade. Lessa é responsável pela execução de Marielle Franco e Anderson Gomes, Oliveira está envolvido no caso da execução da Juíza Patrícia Accioly. Um pouco da história do Rio de Janeiro pode nos ajudar a entender o presente e o futuro. 

Eduardo Paes tenta aprovar o armamento da guarda municipal há anos. Em 2021 ele tentou usar um estudo da FGV, feito em cidades que têm menos da metade dos habitantes do Rio, para dizer que a medida era boa. Um dos pesquisadores responsáveis pela pesquisa, o economista Paulo Arvate, pontuou o baixíssimo impacto na redução de homicídios — de 0,5% a 2%. Sobre o Rio, ele levantou a bola: “Não trabalho com o Rio. Mas sei que a cidade tem particularidades. O Rio tem um problema sério, que é o das milícias, que precisa ser corrigido”. 

Paes se apegou aos dados de São Paulo — que já foram revertidos. O coronel José Vicente da Silva Filho, ex-secretário Nacional de Segurança Pública, que vive em São Paulo, selou a crítica: “A milícia é tão carioca quanto o Flamengo”.

Não há uma única localidade do Rio de Janeiro que não tenha sido dominada com a participação ativa de funcionários públicos. Agentes de segurança, membros do judiciário, políticos e muitos outros são parte dos grupos criminosos que dominam essa cidade. Agora, a porta giratória entre legal e ilegal vai ganhar mais uma repartição. O crime agradece!

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