O projeto de integração dos bancos de dados da Polícia Federal e do Exército, que facilitaria a fiscalização de armas no país, está em xeque.
Mensagens e documentos obtidos em primeira mão pelo Intercept Brasil revelam que diretores envolvidos chamaram atenção para a falta de orçamento – e servidores dizem que o projeto, que já foi remarcado, não é considerado prioridade no Ministério da Justiça e Segurança Pública.
A ideia é transferir para a Polícia Federal, que já é responsável pela fiscalização e controle de armas de agentes públicos de segurança, a responsabilidade sobre os CACs – colecionadores, atiradores e caçadores – hoje sob competência do Exército.
Já mostramos que esse é um grande gargalo na segurança pública, com registros de desvios e falta de transparência. A bancada da bala, que defende o armamento dos cidadãos e uma fiscalização mais frouxa, quer que tudo continue como está.
A integração estava inicialmente prevista para janeiro de 2025, foi adiada para julho e enfrenta dificuldades para ser concluída até mesmo na nova data. Enquanto isso, o controle de armas e munições segue com o Exército.
Segundo um policial inicialmente envolvido no processo, que não será identificado por temer represálias, a Polícia Federal não havia recebido “nenhum centavo para estruturar a PF para receber os CACs” até maio de 2025.
Mensagens trocadas entre integrantes do governo corroboram a alegação do agente. Em uma das conversas, de novembro de 2024, o coordenador-geral de Orçamento e Finanças, Glauberto Antonio Rodrigues Alves, disse ao subsecretário de Planejamento e Orçamento, David de Lima Freitas, que o cenário financeiro era “extremamente delicado e preocupante”.
Coordenação-Geral de Orçamento e Finanças do MJ reconhece demandas da PF para adiamento da migração da competência.
Segundo o coordenador, a PF tinha fechado o ano de 2024 pedindo um reforço de quase R$ 150 milhões para cobrir os cortes no orçamento e honrar os compromissos assumidos.
Em janeiro de 2025, mês em que a transferência deveria ter sido concluída, o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, informou ao secretário-executivo do Ministério da Justiça e Segurança, Manoel Carlos de Almeida Neto, que as medidas necessárias não tinham sido concluídas até aquele momento, setembro de 2024, “em virtude da ausência de recursos”.
A transferência de responsabilidade para a PF foi prevista em decreto assinado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em julho de 2023. Mas só no dia 14 de maio que o Ministério da Justiça e Segurança Pública anunciou a liberação de R$ 20 milhões para a Polícia Federal, R$ 16,2 milhões para contratação de terceirizados pelo prazo de seis meses e R$ 3,8 milhões para a compra de equipamentos de informática.
No entanto, o órgão havia previsto investir muito mais só nessas duas demandas, cerca de R$ 62 milhões – ou seja, o repasse foi R$ 42 milhões menor do que o esperado.
Uma das explicações dadas pelo Ministério da Justiça é que o valor pedido inicialmente pela PF pagaria os terceirizados para trabalharem durante todo o ano de 2025. A pasta, então, revisou o número necessário total de terceirizados, chegando a um custo de R$ 16,2 milhões, para atenderem as demandas relacionadas aos CACs só no segundo semestre deste ano. “A atualização orçamentária visa garantir a adequada execução do plano, com otimização dos custos e observância aos critérios de economicidade e eficiência na gestão pública”, disse o ministério por meio de sua assessoria de imprensa.
Um servidor do MJ, no entando, nos confidenciou que a razão para o não atendimento, na verdade, reside nos cortes de gastos sucessivos sofridos pela pasta – o último, de R$ 748,6 milhões.
Apesar da cruzada orçamentária, a assessoria do MJ informou que os R$ 20 milhões destinados vão ser suficientes para a PF assumir a competência em 1° de julho, mas que novos recursos terão que ser destinados ao órgão. Se isso acarretará em consequências negativas para a segurança pública, só será possível avaliar nos próximos meses.
Em meio às mudanças, PF dispensou antigos responsáveis pelo controle de armas
Dois dias antes de anunciar a verba reduzida para a Polícia Federal, o Ministério da Justiça fez uma grande mudança estrutural: realocou os então responsáveis por operacionalizar a integração dentro da PF.
A dispensa do delegado Cristiano Campidelli do cargo de coordenador-geral de Controle de Serviços e Produtos da Polícia Federal, onde atuava desde fevereiro de 2023, foi publicada no Diário Oficial da União de 13 de maio. Ele era o responsável, em âmbito nacional, pelo controle e fiscalização de armas, segurança privada e produtos químicos.
Campidelli foi dispensado na esteira da saída de Rodrigo de Melo Teixeira do cargo de diretor de Polícia Administrativa. Teixeira foi quem assinou o planejamento de migração das competências junto com o comandante logístico do Exército, o general Flavio Marcus Lancia Barbosa.
Teixeira chegou a ser cotado para assumir como novo diretor-geral da PF, mas não foi escolhido. Seu cargo na Polícia Administrativa foi ocupado por Fabrício Schommer Kerber. “O Teixeira sempre foi um diretor que ‘não falava amém’. Nossa postura sempre foi essa: tomar decisões baseadas em critérios técnicos. Isso, às vezes, incomoda”, relatou o policial que participou do planejamento.
Em ofício ao Ministério Público Federal enviado em setembro de 2024, Teixeira disse que o sistema para fiscalizar os CACs já estava em fase de testes, com entrega estipulada para o fim do mês seguinte – ou seja, outubro de 2024. Segundo ele, a transferência da base de dados já tinha começado e o Exército estava colaborando. Mas isso não andou.
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Teixeira e Campidelli, até então responsáveis pelo controle e fiscalização de armas dentro da PF, que estariam cientes e alertaram sobre as dificuldades de execução do plano – sem o orçamento em mãos – foram dispensados pouco antes do anúncio da nova data de transferência.
Na mesma reunião em que foi anunciada a verba, em 14 de maio, o delegado federal Cairo Duarte, então adido da PF na Embaixada do Brasil em Ottawa, no Canadá, foi nomeado para o cargo de coordenador-geral de Controle de Serviços e Produtos da Coordenadoria da PF.
Outro especialista que atua diretamente com o governo e também preferiu não se identificar para não comprometer eventuais colaborações técnicas, tem percepção similar. “São duas situações: a da transferência dos CACs para a PF e a questão da interoperabilidade dos sistemas”.
A PF já está com acesso ao Sistema de Gerenciamento Militar de Armas, o Sigma, há algum tempo, e o Exército conseguiu conectá-lo ao Infoseg, sistema nacional de informações de segurança pública, que os policiais têm acesso.
Mas, até agora, poucos agentes estão dentro do sistema. “É um ganhou, mas não levou”, disse o especialista, chamando a atenção para a lentidão.
A demora e o não cumprimento do decreto fez o Ministério Público Federal entrar em ação. O órgão solicitou novas justificativas e entrou com uma ação contra a União para tentar garantir o cumprimento do novo prazo de 1º de julho.
O procurador do caso, Julio José Araujo Junior, disse que “a grande preocupação é garantir o cumprimento da transferência, com planejamento adequado e com celeridade” e que “deve haver alocação de recursos e adoção de todas as medidas necessárias para efetivar essa mudança.”
Em paralelo, o Tribunal de Contas da União também apura se ocorreram irregularidades durante o processo de transferência das competências do Comando do Exército para a PF que possam ter gerado prejuízos aos cofres públicos. O processo corre em sigilo.
Não há agentes suficientes para a nova função, diz federação dos policiais federais
No comunicado em que reiterou que a Polícia Federal assumirá a fiscalização de CACs em julho, o Ministério da Justiça afirmou também que serão criadas delegacias de controle de armas “nas capitais de todos os estados e no Distrito Federal”, além de 96 Núcleos de Controle de Armas em delegacias federais no interior do país.
Mas há um outro problema: a falta de contingente. Ainda em 2023, a Federação Nacional dos Policiais Federais, Fenapef, divulgou nota onde cobrava “aumento do quantitativo de servidores e das condições de estrutura e logística” para conseguir assumir as funções que a fiscalização exigiria.
Uma terceira fonte ouvida pela reportagem, que atua no setor há mais de duas décadas, disse que o foco do ministro Ricardo Lewandowski está voltado apenas para a PEC da Segurança, que estabelece um “SUS da Segurança Pública”. O projeto tramita no Congresso e é um dos debates mais caros do governo Lula, exigindo muitos acordos e melindres.
O vice-presidente da Fenapef, Marcos Vinícius Gomes Avelino, disse ao Intercept que é indiscutível que “haverá sobrecarga para o pessoal”. Enquanto o MJ diz que qualificou 600 servidores, o Exército dispunha de 2,2 mil para a fiscalização dos CACs – número quase quatro vezes maior, mas que, ainda assim, tinha sinais de que era insuficiente.
Uma das vozes mais ativas da bancada da bala no Congresso já começou a se mexer contra a mudança na fiscalização.
“O quantitativo sempre será deficitário”, diz Avelino. Isso porque, segundo ele, entre a posse e a entrada na ativa de um policial, “o número de aposentadorias e de evasão é, geralmente, maior que o número necessário de novas contratações”.
O vice-presidente acredita que o que pode jogar a favor da PF é que a instituição já toma conta do armamento da população e adquiriu experiência nesse assunto. Mas a que custo?
Para o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, ADPF, Luciano Leiro, a PF precisa “ampliar os investimentos, especialmente para suprir o déficit de pessoal e viabilizar a reestruturação institucional indispensável ao monitoramento dos cerca de 1,3 milhão de CACs”.
Enquanto isso, o deputado federal Marcos Pollon, do PL do Mato Grosso do Sul, uma das vozes mais ativas da bancada da bala no Congresso, já começou a se mexer contra a mudança na fiscalização.
Pollon, que é fundador da Associação Nacional Movimento Pró Armas, conhecido como Proarmas, já apresentou um projeto de decreto legislativo para tentar impedir a conclusão do acordo. Defendendo que a fiscalização continue com o Exército para garantir a “natureza inclusiva e recreativa da prática do tiro desportivo”, ele quer que tudo fique como está. Não por acaso, deputados membros da bancada armamentista assinaram em 2017 um documento defendendo um militar que desviava armas do Exército, caso revelado pelo Intercept.
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