Maio veio com dias difíceis para quem se preocupa com o meio ambiente. A aprovação pelo Senado da Lei Geral do Licenciamento Ambiental, conhecida como PL da Devastação, parecia ser o ápice do problema. Até que chegou a violência sofrida pela ministra do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas, Marina Silva, na Comissão de Infraestrutura do Senado.
O episódio escancarou o machismo, o racismo e a misoginia – ódio e desprezo a mulheres – daqueles que enxergam o meio ambiente como entrave ao desenvolvimento predatório que defendem para a Amazônia e os outros biomas brasileiros.
Mas o que está por trás de toda a violência destinada a Marina Silva pelos senadores Plínio Valério, do PSDB, Marcos Rogério, do PL, e Omar Aziz, do PSD, principais envolvidos no episódio de violência política de gênero, é mais do que um ataque pessoal. É o interesse econômico da bancada ruralista e seus aliados.
A exploração de petróleo na foz do rio Amazonas é uma das questões centrais deste jogo. E Silva é uma das vozes mais insurgentes desse cabo de guerra. A ministra defende que o Ibama avalie a situação de forma técnica, conforme a legislação ambiental. Estava no Senado convidada. Foi para prestar esclarecimentos sobre a criação de uma unidade de conservação marinha na Margem Equatorial, região no litoral norte do país onde a Petrobras pretende explorar petróleo.
O que aconteceu com Silva é a face visível de como as lutas ambientalista, feminista e antirracista caminham juntas na vida das lideranças de territórios amazônicos ameaçados por empreendimentos e projetos como os defendidos arduamente pelos ruralistas.
Mulheres majoritariamente negras, de origem pobre, que lideram territórios tradicionais – indígenas, agroextrativistas, quilombolas e ribeirinhos – em toda a região detêm sabedoria e conhecimentos fundamentais para a preservação ambiental. Embora sofram diversas formas de violência e tentativas de silenciamento, elas seguem resistindo e se recusam a calar, exatamente como fez Silva.
Os ataques sofridos pela ministra no Senado podem e devem ser associados às violências diárias vividas pelas lideranças amazônidas que estão à frente da defesa dos territórios e da proteção ambiental.
Políticos e grandes empresários ligados ao agronegócio, à mineração e à construção de grandes infraestruturas na região sabem o quanto essas mulheres representam perigo aos seus interesses. São elas que não aceitam dinheiro e outros supostos benefícios em troca de acesso aos territórios e enfrentam com o próprio corpo inúmeras tentativas de desintegração das comunidades.
No cotidiano das mulheres que vivem nos territórios amazônicos, o trabalho do cuidado com crianças, idosos e com a comunidade se estende aos quintais, roças, manguezais, rios e florestas. Elas estão atentas às necessidades de segurança alimentar da comunidade, preocupadas com as futuras gerações e sabem que seu trabalho está totalmente atrelado à conservação da natureza. Esse fato explica ações como a preservação dos bosques e florestas, criação de canteiros coletivos, preparação de mudas e troca de sementes, entre outras atividades indispensáveis para a preservação ambiental.
Por tudo isso, suas lutas incorporam cada vez mais o conceito político de corpo-território, que vem conquistando espaço e centralidade nos debates e ações promovidos por diversas correntes feministas. O conceito foi desenvolvido por feministas comunitárias da América Central, especialmente por Lorena Cabnal, liderança e pensadora indígena da Guatemala. Muitos movimentos passaram a utilizá-lo para abordar as resistências lideradas em sua maioria por mulheres contra ameaças das grandes corporações.
Para Cabnal, defender o território-terra e não defender o corpo-território das mulheres é uma incoerência política, dada a impossibilidade de separar as lutas pela proteção dos corpos e dos territórios no sistema capitalista, machista, racista e patriarcal.
E não são poucas as agressões aos corpos causadas pelo agronegócio e pela mineração em territórios amazônicos. Entre elas, as doenças provocadas pela contaminação dos solos, águas e ar por agrotóxicos e outras substâncias químicas associadas a doenças de pele, diversas formas de câncer, infertilidade, abortos e má formação fetal.
As consequências do modelo de desenvolvimento imposto à Amazônia para as mulheres e para os territórios tradicionais tendem a se agravar com o desmonte da legislação ambiental, principalmente com a aprovação do PL da Devastação.
Enquanto o licenciamento ambiental é enfraquecido, o agronegócio “destrava o Brasil”. E destravar, neste caso, é impedir que mulheres defensoras da Amazônia e de suas comunidades tradicionais sejam consultadas, com poder de veto, antes da implementação de projetos que afetem seus territórios, conforme diz a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, a OIT, da qual o Brasil é signatário.
Não precisa se afastar muito da própria comissão onde Silva sofreu agressões para ver essa realidade materializada. O senador Omar Aziz, ex-governador do Amazonas, é um dos principais interessados em obras como a pavimentação da BR-319, estrada que liga Porto Velho, em Rondônia, a Manaus, no Amazonas. O senador acusa Marina de atrapalhar o desenvolvimento do país. “Se essa coisa não andar, a senhora também terá responsabilidade do que nós estamos aprovando aqui. Pode ter certeza”, acusou, sem medo, Aziz.
LEIA TAMBÉM:
- Ribeirinhos no Pará combatem incêndios enquanto prefeita viaja para COP sem agenda oficial
- Poderes exclusivos e impeachment no STF: por que a extrema direita quer tomar o Senado em 2026
- Marina Silva: ‘Não tem força humana que consiga conter se as pessoas não pararem de queimar’
Silva segue firme e não se cala. Defendeu, em seu perfil nas redes sociais que “o licenciamento ambiental é uma conquista da sociedade brasileira” e, nesse momento, “só o povo brasileiro pode evitar esse desmonte que está sendo proposto”.
Assim como muitas mulheres lideranças amazônidas, a ministra segue sua luta contra a desinformação ambiental e a devastação do bioma amazônico. Escutar o que ela e outras mulheres amazônidas têm a anunciar e a denunciar é proteger a Amazônia.
Maio foi duro, mas nos lembra, que mesmo em ano de COP30 no Brasil, o desenvolvimentismo e a ambição do agronegócio, da mineração e das petroleiras, não tem limites. Os mesmos setores que tentam calar a voz da mulher são aqueles que propõem falsas soluções para a crise ambiental planetária da qual são os alguns dos maiores responsáveis.
Sem anúncios. Sem patrões. Com você.
Reportagens como a que você acabou de ler só existem porque temos liberdade para ir até onde a verdade nos levar.
É isso que diferencia o Intercept Brasil de outras redações: aqui, os anúncios não têm vez, não aceitamos dinheiro de políticos nem de empresas privadas, e não restringimos nossas notícias a quem pode pagar.
Acreditamos que o jornalismo de verdade é livre para fiscalizar os poderosos e defender o interesse público. E quem nos dá essa liberdade são pessoas comuns, como você.
Nossos apoiadores contribuem, em média, com R$ 35 por mês, pois sabem que o Intercept revela segredos que a grande mídia prefere ignorar. Essa é a fórmula para um jornalismo que muda leis, reverte decisões judiciais absurdas e impacta o mundo real.
A arma dos poderosos é a mentira. A nossa arma é a investigação.
Podemos contar com o seu apoio para manter de pé o jornalismo em que você acredita?