Israel vai matar Gaza de fome

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Israel e EUA exploram a fome dos palestinos e usam ajuda humanitária para expulsá-los de Gaza

Depois de 11 semanas de bloqueio, Israel agora controla ajuda humanitária em Gaza, com apoio dos EUA, para confinar e expulsar palestinos.

Israel vai matar Gaza de fome

Quando o governo Trump revelou seus planos de colocar uma ONG recém-criada, sem nenhuma experiência humanitária, no encargo da distribuição de ajuda humanitária aos palestinos em Gaza, no começo do mês, a indignação entre as organizações humanitárias foi generalizada. 

Segundo o plano, que tem apoio dos governos dos EUA e de Israel, os civis seriam levados a se concentrarem no sul de Gaza, nas chamadas “zonas estéreis”, controladas pelos militares israelenses. A nova ONG, liderada por um ex-fuzileiro naval dos EUA, seria a única distribuidora de ajuda humanitária, em alguns poucos locais. A segurança seria feita por contratados dos EUA, incluindo um grupo dirigido por um ex-dirigente da CIA.

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A comunidade humanitária receava que o governo israelense fosse instrumentalizar o novo plano de ajuda como arma contra os palestinos, que atualmente enfrentam fome em massa, em razão do bloqueio de 11 semanas realizado por Israel. Alguns especialistas no assunto compararam as zonas com um “campo de concentração”, dizendo que o plano só serviria para desalojar ainda mais palestinos. Algumas autoridades israelenses disseram ter esperança de que o plano vá expulsar permanentemente os palestinos de Gaza.

Esses receios se mostraram premonitórios na terça-feira (26), quando o plano de ajuda, liderado pela Fundação Humanitária de Gaza, ou GHF, foi colocado em prática no bairro de Tel Al-Sultan, em Al-Mawasi, Rafah. Milhares de palestinos foram obrigado a andar quilômetros até o local, onde as grandes multidões se espremiam em corredores cercados, enquanto seguranças particulares dos EUA, contratados, armados com fuzis de assalto, tomavam conta das caixas de ajuda. 

Durante a distribuição, os guardas inicialmente submeteram os as pessoas a revistas intensas, mas depois afrouxaram a segurança, segundo contaram ao Intercept dos EUA duas fontes que monitoravam o processo.

Nesse ponto, a multidão começou a invadir o local de distribuição, tentando receber os mantimentos. Tiros foram ouvidos, levando a multidão a fugir. Pelo menos três pessoas foram mortas e outras 47 ficaram feridas em meio aos tiros e à superlotação, segundo notícias que citam autoridades de Gaza. Outras seis pessoas foram mortas e 15 ficaram feridas a tiros na quarta-feira, na região de Qizan Rashwan, perto de Khan Younis, enquanto se encaminhavam para receber a ajuda em um local ao norte de Rafah, segundo autoridades e organizações humanitárias.

A organização Euro-Med Human Rights Monitor, com sede em Genebra, confirmou na terça-feira a morte de sete pessoas, e disse que 47 ficaram feridas por tiros disparados, tanto pelos militares israelenses, quanto pelas empresas privadas de segurança dos EUA. A organização disse que os soldados israelenses haviam entrado no local para tirar contra a multidão na terça-feira. E que, na quarta-feira, os militares enviaram mensagens de texto aos palestinos, com instruções para irem receber os mantimentos na área do corredor Morag, ao norte de Rafah. Quando chegaram, as multidões em busca de ajuda foram novamente recebidas a tiros, que mataram seis pessoas, incluindo uma mulher idosa. A organização citou seus pesquisadores de campo, que confirmaram que os feridos foram vistos no Hospital Al-Najjar e em um hospital da Cruz Vermelha. A organização também recebeu relatos de sete pessoas que foram buscar ajuda no centro de distribuição, mas nunca voltaram. 

‘A ajuda está sendo usada como arma, não como tábua de salvação.’

Vídeos publicados nas redes sociais mostravam milhares de pessoas avançando para o local de distribuição. As imagens mostram que, quando os tiros foram ouvidos, a multidão se dispersou em busca de segurança ao longo de trincheiras de terra e cercas derrubadas. Em um dos vídeos, um homem arrastando uma caixa de ajuda humanitária diz que havia andado mais de 10 quilômetros até o local de distribuição, onde viu um jovem ser morto na sua frente.

“É isso que acontece quando você tenta substituir o sistema humanitário por uma agenda política”, diz Abdalwahab Hamad, gerente do escritório em Gaza da organização humanitária paestina Juhoud. “Aqueles milhares de palestinos, famintos e desesperados, invadiram o centro de distribuição, não porque são violentos, não porque as pessoas estão com fome, mas porque a ajuda está sendo usada como arma, não como tábua de salvação.”

Em um comunicado ao Intercept dos EUA, os militares israelenses contestaram os relatos de campo e minimizaram qualquer menção à violência, dizendo que os soldados havia “disparado tiros de alerta na área fora do complexo” antes de conseguirem controlar o local.

A Fundação Humanitária de Gaza negou os relatos de vítimas em seus locais de distribuição, e disse em um comunicado ao Intercept que nenhuma das pessoas que estavam recebendo os mantimentos foi morta ou ferida. A GHF também disse que nenhum tiro foi disparado contra a multidão, e refutou os relatos de violência como “desinformação”. No total, 14.550 caixas foram entregues nos dois locais de distribuição, com o objetivo de abrir outros dois, segundo a fundação.

“De acordo com o protocolo estabelecido, por um breve momento a equipe da GHF intencionalmente afroxou os protocolos de segurança para se proteger contra as reações da multidão ao finalmente receber alimentos”, diz o comunicado da fundação. “A ordem foi restaurada sem incidentes.”

Oren Marmorstein, porta-voz do ministério das Relações Exteriores de Israel, minimizou o caos da terça-feira, alegando que a fundação havia entregado 8 mil caixas de mantimentos aos palestinos, e publicando imagens de caixas de papelão repletas de farinha, macarrão e óleo. “Ajuda humanitária para o povo de Gaza, não para o Hamas”, dizia a legenda da foto que ele publicou nas redes sociais. 

O pretexto para esse novo regime de distribuição é a teoria, defendida por Israel e pelo governo dos EUA, de que o Hamas vem roubando esses mantimentos para enriquecer e controlar o povo de Gaza.

O primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, repetiu na terça-feira a acusação infundada, durante a Conferência da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto, dizendo que precisava transferir a população de Gaza para o sul, “para sua própria proteção” contra o Hamas.

Nem Israel, nem os EUA forneceram provas dessas acusações. 

Israel, no entanto, vem instrumentalizando o acesso à ajuda humanitária ao longo da atual guerra em Gaza. A prática remonta pelo menos à década de 1990, mas se intensificou em 2007, depois que o Hamas foi eleito para controlar Gaza. A prática continua ao longo da mais recente invasão de Israel na Faixa de Gaza, após o ataque do Hamas em 7 de outubro de 2023.

Desde que Israel impôs o bloqueio total contra Gaza, em 2 de março deste ano, a insegurança alimentar se espalhou por toda a região, e 1 em cada 5 palestinos em Gaza enfrenta a fome. Mais de 9 mil crianças já foram tratadas por desnutrição aguda este ano. Na semana passada, 29 crianças e idosos sofreram mortes relacionadas à fome, segundo as autoridades de saúde de Gaza. 

Durante a primeira semana da atual ofensiva de Israel, de codinome Operação Carruagens de Gideão, mais de 180 mil palestinos foram desalojados, segundo a ONU. Mais de 600 palestinos também foram mortos nos ataques aéreos israelenses sem curso. Logo que o novo ataque foi lançado, Netanyahu anunciou que o governo autorizaria a entrada de uma ajuda “mínima” ou em “quantidade básica” em Gaza, para evitar mais reações internacionais. Depois que grupos coordenados pela ONU conseguiram entregar pequenas quantidades de mantimentos para os palestinos, algumas das padarias do Programa Mundial de Alimentos, no sul de Gaza, reabriram na semana passada, mas precisaram fechar novamente depois de três dias, por falta de farinha. 

Ramy Abdu, presidente da organização Euro-Med Human Rights Monitor, que vem acompanhando os ataques contra civis por Israel em Gaza, diz que as atuais restrições contra a ajuda humanitária evocam um estudo militar israelense de 2008, que calculou com precisão o número mínimo de calorias de que um palestino precisava para evitar a desnutrição. Para eles, isso comprova que o governo está limitando ilegalmente a entrada de alimentos no território.

“Estamos falando sobre gestão da fome e/ou engenharia da fome”, diz Ablu, “que no final serve à agenda e aos propósitos israelenses”. 

O plano de ajuda humanitária de Israel deixa de lado a ONU, que tem uma equipe de mais de 13 mil trabalhadores em Gaza e vem sendo em grande parte responsável pela entrega de mantimentos aos palestinos durante a guerra de Israel em Gaza. As organizações humanitárias criticaram o plano, dizendo que não querem ser cúmplices no deslocamento de milhares de palestinos. 

A GHF era liderada por um ex-atirador de elite dos Fuzileiros Navais dos EUA, Jake Wood, que comandou missões humanitárias para o Haiti e outros locais de desastre pelo mundo com sua organização, Team Rubicon. Wood pediu demissão no começo da semana, antes da entrada em vigor do novo plano, dizendo que a fundação não teria condições de seguir “os princípios humanitários de humanidade, neutralidade, imparcialidade e independência, que não pretendo abandonar”.

A GHF, que opera com 100 milhões de dólares (560 milhões de reais) de financiamento, seguiu adiante na segunda-feira sem Wood, e abasteceu seus centros para fazer a distribuição na terça-feira. Seguranças armados das empresas privadas Safe Reach Solutions, com sede no estado de Wyoming, nos EUA, e UG Solutions, com sede na Carolina do Norte, faziam a guarda dos locais. A Safe Reach Solutions é comandada por Philip F. Reilly, ex-agente da CIA que treinou os Contras de direita na Nicarágua na década de 1980, e foi um dos primeiros a serem destacados para o Afeganistão em 2001, vindo a se tornar chefe da estação em Cabul antes de migrar para o setor privado, segundo uma investigação do New York Times.

‘Não é possível substituir um sistema humanitário por um posto de controle e esperar paz.’

Hamad chamou o incidente de terça-feira de “punição disfarçada de caridade”, e pediu ao governo israelense que permita à ONu retomar o controle do processo de distribuição de ajuda humanitária. 

“A ajuda em Gaza não deveria ser política, não deveria ser condicional. Ela só funciona quando é protegida, quando é neutra, e coordenada por organizações como a ONU”, diz Hamad. Ele acrescenta que os palestinos em Gaza têm confiança nos grupos apoiados pela ONU, e a ONU já tem a infraestrutura necessária para identificar claramente as necessidades e atendê-las.

“Não é possível substituir um sistema humanitário por um posto de controle e esperar paz”, ele diz, “porque é uma caridade controlada pelos militares, e as pessoas estavam lá apenas por desespero.”

Atualização: 28 de Maio de 2025, 4:01 P. M. ET
A história foi atualizada com novas informações do Euro-Med Human Rights Monitor sobre o número total de mortes, além de um comunicado da Fundação Humanitária de Gaza recebido após a publicação.

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