Em meio a uma ofensiva de israel contra palestinos na Faixa de Gaza, a siderúrgica brasileira Villares Metals, do interior de São Paulo, exportou pelo menos duas cargas de aço para duas fábricas israelenses de armas projetadas para uso militar: a IMI Systems e a Israel Weapon Industries, ou simplesmente IWI.
Dados sobre as exportações da Villares para a indústria bélica de Israel foram obtidos por jornalistas do site irlandês The Ditch, que os compartilharam com o Intercept Brasil.
As exportações de Villares Metals para Israel identificadas pelo The Ditch partiram de Sumaré, no interior de São Paulo – a pouco mais de 120 quilômetros da capital paulista. É lá que fica a principal unidade da siderúrgica.
Da cidade do interior paulista, saíram em janeiro barras de aço acondicionadas numa caixa de madeira com destino a Qiryat Gat, localizada 56 quilômetros ao sul da capital israelense Tel Aviv. Qiryat Gat é onde fica a sede da IWI.
A IWI foi uma estatal irraelense até 2005. Ela fabrica fuzis e metralhadoras utilizados pelas Forças de Defesa de Israel e outras forças armadas fundo afora. A submetralhadora Uzi, que foi um dos armamentos mais emblemáticos do arsenal israelense da década de 1950 ao início deste século, segue no catálogo da empresa.
A rota do aço
A carga da Villares, avaliada em 441 dólares (cerca de R$ 2.500 à época), chegou à IWI em março. Antes, passou pelo porto de Santos; embarcou no navio MSC Adonis; passou pelo porto de Livorno, na Itália, em fevereiro; foi transferida para o navio MSC Athos; e só depois desembarcou no porto de Ashdod, já em Israel.
Quando a carga chegou no seu destino, a Villares Metals já preparava o envio de uma nova remessa de barras de aço, ainda maior que a primeira, agora para a IMI Systems.
Partiram do Brasil, novamente via porto de Santos, sete caixas de madeira cheias de metal, avaliadas em 6.228 dólares (aproximadamente de R$ 35 mil). O material seguiu para o porto de Haifa, cidade-sede da Elbit Systems, chegando ao seu destino em abril de 2015.
A Elbit Systems é uma empresa de produtos bélicos israelense fundada em 1996. Em 2018, ela comprou a IMI Systems, que até então era uma uma estatal israelense.
A IMI Systems surgiu em 1933, ainda antes da fundação do estado de Israel. Naquela época, ainda era chamada de Israel Military Industries e, por isso, a sigla IMI. Foi a IMI Systems que projetou a submetralhadora Uzi. A IWI, destino da primeira carga, por sinal, era uma divisão da IMI que acabou privatizada em 2005.
Procurada, a Villares Metals não quis falar sobre suas exportações. As empresas israelenses IMI Systems e a IWI também não comentaram
Em 2018, o que restava da IMI System foi vendida pelo governo de Israel. A Elbit comprou a companhia. Hoje ela fabrica drones, aviões, tanques, mísseis e outros equipamentos militares e exporta a diversos países. Em 2024, faturou cerca de 1,7 bilhão de dólares e recebeu pedidos de 22,1 bilhões de dólares.
O Brasil, inclusive, chegou a encomendar 36 viaturas blindadas da Elbit em concorrência promovida pelo Exército Brasileiro. A compra, avaliada em cerca de R$ 1 bilhão, foi suspensa após intervenção do assessor especial de Lula, o ex-ministro Celso Amorim, em 2024, ao levar em conta as ações de Israel contra os palestinos.
Procurada, a Villares Metals não quis falar sobre suas exportações. As empresas israelenses IMI Systems e a IWI também não comentaram sua relação com a siderúrgica brasileira.
Questionado pela reportagem, o governo do presidente Lula, que chegou a chamar a ação de Israel em Gaza de genocídio, fez um jogo de empurra-empurra entre os ministérios e sequer soube informar que órgão público acompanha as exportações da Villares para fábricas de equipamentos militares de Israel.
Incoerência de Lula
Lula já chamou a ofensiva de Israel de genocídio e chegou compará-la ao Holocausto. Por conta disso, foi inclusive declarado persona non grata por Israel. Apesar das críticas, ele não tomou nenhuma medida para conter a colaboração de empresas brasileiras com o Estado isralense durante a guerra em Gaza, ainda que especialistas apontem que o presidente tem a prerrogativa de barrar exportações.
Um relatório da ONG Oil Change International chegou a apontar que o Brasil era responsável pelo fornecimento de 9% de todo petróleo exportado para Israel durante os primeiros nove meses do conflito Israel-Hamas, deflagrado em outubro de 2023.
Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços apontam, inclusive, que o Brasil aumentou suas exportações para Israel durante a guerra. Em 2023, primeiro ano do governo Lula, haviam sido enviados 661 milhões de dólares em produtos. Em 2024, foram 725 milhões de dólares – quase 10% a mais.
Grande parte do que o Brasil vende a Israel é justamente petróleo, seguido de carnes, soja, café e outros produtos.
A exportação de barras de aço também é relevante. No ano passado, foi o décimo produto mais vendido do Brasil para Israel, com valor total de quase 10 milhões de dólares. Foram exportadas 750 toneladas de barras em 2024, quase a mesma quantidade de 2023.
Em 2022, ano em que o Brasil bateu recordes de exportação de produtos em geral a Israel, a venda de barras de aço foi de 425 toneladas – 43% a menos do que de 2024. Em 2022, Israel não estava em guerra.
Os negócios do Brasil com Israel durante o conflito são controversos porque a Constituição prevê que o país mantenha relações internacionais pautadas na busca pela paz e pela promoção dos direitos humanos. Também porque o Brasil é signatário de tratados que proíbem exportações de armas e componentes que podem vir a ser utilizadas para crimes de guerra ou genocídios.
Em entrevista ao Intercept, Gustavo Vieira, professor de Direito Internacional da Universidade Federal da Integração Latino-Americana, a Unila, e membro da Academia Brasileira de Direito Internacional, lembrou que Lula classificou como genocídio a ação de Israel em Gaza. Portanto, deveria agir para que produtos nacionais não fossem usados como matéria-prima para armamentos usados pelas forças israelenses.
“Não é que haja uma ilegalidade flagrante, visto que o Brasil está exportando barras de aço, mas é incoerente”, disse ele. Vieira ressaltou que toda exportação é feita com autorização do governo federal. Basta, portanto, uma ordem de Lula para que determinados negócios sejam proibidos.
‘A efetividade dos importantes posicionamentos do presidente Lula fica prejudicada se desacompanhada de ações concretas’
“Uma resolução da Câmara de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio poderia estabelecer esse embargo ou restrições comerciais, e isso já deveria ter ocorrido há muito tempo”, ratificou Maira Pinheiro, advogada que milita na questão palestina.
“A efetividade dos importantes posicionamentos do presidente Lula fica prejudicada se desacompanhada de ações concretas voltadas a impedir que o estado brasileiro colabore com a máquina de guerra e morticínio em massa do estado de Israel”, acrescentou ela.
O professor do curso de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, Bruno Huberman, confirmou que, apesar das críticas de Lula, o Brasil nunca interrompeu formalmente relações comerciais ou de qualquer outra natureza com Israel. “Isso revela muito da política do Lula, que ele fala duro e age manso”, afirmou à reportagem.
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Já a advogada Carol Proner pontuou, em entrevista ao Intercept, que o Brasil deveria fazer mais: “O governo inglês ameaça com sanções, a França também. Tudo que pudermos fazer como governo seria válido”, destacou.
A Turquia já suspendeu determinadas exportações a Israel, incluindo aço, fertilizantes, combustível de aviação, tijolos e equipamentos de construção. O Canadá também interrompeu a venda de armas para os israelenses.
Villares tem controle estrangeiro
A Villares Metals é uma empresa brasileira fundada em 1944, em São Caetano do Sul. Na década de 1960, Lula chegou a trabalhar na empresa como metalúrgico. Foi como funcionário dela que o hoje presidente se envolveu no movimento sindical, o que marcou o início de sua carreira como político.
Desde 2000, a Villares Metals é controlada por empresas estrangeiras. Em 2007, ela foi adquirida pela Voestalpine AG, siderúrgica sediada na Áustria. A empresa diz manter padrões de qualidade de produtos, segurança, sustentabilidade e governança corporativa. Como um de seus valores, garante “fazer a coisa certa”.
O Intercept procurou a Villares Metals para tratar das exportações de barras de aço para indústrias de armas israelenses durante a guerra em Gaza. A empresa informou que seus representantes não concedem entrevista “devido ao guideline de comunicação” do grupo do qual a empresa faz parte – no caso, o Voestalpine AG.
A reportagem insistiu pedindo respostas por escrito de perguntas previamente enviadas por e-mail ou mesmo um posicionamento sobre as vendas da empresa para Israel. Ela não respondeu.
Também procuramos a IWI, que informou que não divulga informações sobre suas operações ou seus clientes. A reportagem também tentou contato com a IMI Systems por e-mail e por meio do site da empresa que a controla, a Elbit Systems. Não houve retorno.
Governo desconhece operação
O Intercept também procurou o governo federal. Perguntamos ao Ministério das Relações Exteriores, o Itamaraty, se o estado brasileiro tem conhecimento de que uma empresa nacional fornece barras de aço para fábricas de armas de Israel e o que a gestão Lula tem a dizer sobre isso.
O Itamaraty respondeu sugerindo que entrássemos em contato com o Ministério da Defesa, “órgão responsável pela supervisão do comércio exterior brasileiro no que tange a produtos de defesa”.
Uma resposta semelhante veio do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, comandado pelo vice-presidente Geraldo Alckmin, do PSB. O órgão respondeu que “não detém informações sobre as empresas que compram produtos brasileiros no exterior, nem sua finalidade e uso no país destino” e ressaltou que “as exportações de armas e materiais militares são reguladas pelo Exército e pela Defesa”.
Procuramos, então, o Ministério da Defesa. O órgão prontamente respondeu ao ser questionado sobre a venda de barras de aço para Israel: “informamos que o Ministério da Defesa não é o órgão de controle do produto em questão”. Enviamos, então, a resposta da Defesa ao Itamaraty e à pasta de Desenvolvimento pedindo um novo posicionamento. Não houve resposta.
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