Durante o segundo mandato de Lula, enquanto o Brasil vivia o auge da lua de mel com o projeto lulista e a popularidade do presidente batia nos 80%, o filósofo Vladimir Safatle foi uma das corajosas vozes dissonantes a dizer que o pacto de conciliação não poderia durar muito.
Naquele momento, Safatle começa a descrever os ‘filhos bastardos do lulismo’, ou seja, como a conciliação produzia insatisfações subterrâneas que tendiam a irromper violentamente e que, se não fosse revertida a um projeto de esquerda, poderia significar um ascenso conservador.
E em um arroubo de clarividência conclui, ainda em 2018, que ‘há um golpe militar em marcha no Brasil hoje’.
Hoje, em meio à recuperação limitada da esquerda partidária e de notícias sobre um plano de militares para dar mais um golpe, a visão de Safatle ajuda a entender o que ainda pode dar muito errado – e, claro, como podemos começar a trilhar outro caminho para o Brasil e paras as esquerdas do país.
Para Safatle, as causas do crescimento do fascismo mundo afora podem estar escondidas à luz do dia, no meio do noticiário sobre as tragédias climáticas, como as enchentes devastadoras que atingiram o Rio Grande do Sul em maio, ceifando vidas e causando bilhões em prejuízos. “O Brasil é a maior fronteira de devastação ecológica do mundo hoje.”, comenta Safatle.
Mas, entretanto, “a pauta ecológica é uma pauta inexistente na política brasileira. É uma coisa impressionante mesmo”, complementa.
Diante desse quadro dramático, a esquerda brasileira, que deveria fazer o enfrentamento à devastação climática, parece ter perdido seu norte. “A esquerda brasileira sempre foi desenvolvimentista, era a questão de você generalizar o progresso, levar o progresso, internalizar o progresso e nunca questionar, afinal de contas, que tipo de progresso é esse?”.
Esse dilema entre a defesa do meio ambiente e o desenvolvimentismo econômico segue sendo a tônica dos governos PT durante este terceiro mandato de Lula. Mas, mesmo quando a esquerda não está em dúvida sobre que caminho seguir, é inegável sua falta de força política para enfrentar os desafios contemporâneos.
Safatle causou polêmica ao afirmar no início do ano que “a esquerda morreu”. Nessa entrevista, complementa: “eu sei que a morte não é o fim. A morte é o momento dos processos de transformação da vida”.
Essa transformação, contudo, começa com a aceitação dessa morte, da necessidade de reconstruir. Seria justamente agora que a esquerda é mais indispensável. “O diagnóstico da falência de uma experiência política de longa duração implica, por outro lado, na obrigação de uma tentativa de criação de uma força ofensiva efetiva”.
No centro dessa falência e morte da esquerda, Safatle identifica como as promessas de justiça social e igualdade se esvaziam em meio a um discurso desgastado e uma ação política incapaz de mobilizar a população.
A esquerda institucionalizada, acomodada em cargos públicos e dependente de verbas estatais, perdeu a conexão com as bases e a capacidade de propor alternativas reais ao sistema vigente.
“Esse processo de transformação da esquerda em modo de gestão, em operadora de políticas de gestão social, vai limitando-a cada vez mais. No caso do Brasil, limita, porque, entre outras coisas, você tira do horizonte o fato”.
Enquanto a esquerda se enfraquece, o bolsonarismo, a extrema direita, avança, explorando o medo, a insegurança e a frustração da população.
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“É uma lógica da guerra infinita. É uma ideia de que a política se transforma em uma gestão de uma guerra infinita. É isso que a gente está vendo. Níveis de violência estatal aumentam muito.” Safatle aponta para essa lógica como um elemento central da extrema direita mundial, aumentando a violência estatal e a repressão contra grupos minoritários e dissidentes, criando um clima de medo e insegurança na sociedade.
E esse processo é global: a desvalorização da vida no campo, nas periferias, em Gaza e dos ameaçados pela tragédia climática é uma só, um processo conexo em todos os lugares. Mas também é vertical: há guerra entre estados, violência estatal contra seus cidadãos e, também, uma própria subjetividade bélica no discurso de extrema direita.
É sob essa lógica que Safatle investiga o caso da candidatura de Pablo Marçal, o “coach da prosperidade”, à prefeitura de São Paulo. Para Safatle, o discurso do empreendedorismo, que inclui nossa relação com trabalho e sustento como uma luta infinita, encaixa perfeitamente com essa guerra infinita.
“Você tem uma subjetividade bélica que vai sendo imposta à sociedade, que é a subjetividade da extrema direita. Numa situação como essa, é cada um por si”.
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