Policias militares da Bahia estão sendo investigados pela corregedoria interna e pela Polícia Federal pela participação no assassinato de Maria de Fátima Muniz, indígena da etnia Pataxó Hã-Hã-Hãe, mais conhecida como Nega Pataxó. A informação foi confirmada ao Intercept Brasil pela própria PM baiana.
O assassinato de Nega Pataxó aconteceu no dia 21 de janeiro, quando ruralistas expulsaram à força – e sem respaldo de decisão judicial – os indígenas da Fazenda Inhuma, ocupada na véspera. O lugar fica no limite entre os municípios de Potiraguá e Itapetinga, no sudoeste do estado. Os agentes também são investigados pelas tentativas de homicídio contra os caciques Naílton Pataxó e Aritanã Muniz.
O Intercept conversou com esses dois sobreviventes, que relataram diversas arbitrariedades cometidas pelos policiais durante a desocupação. Também ouviu um outro indígena, que contou ter sido torturado na véspera da desocupação por um grupo de PMs.
O Cacique Naílton, de 78 anos, era irmão de Nega Pataxó, de 53. Ele foi atingido na altura do abdômen e, desde então, permanece internado no Hospital Costa do Cacau, em Ilhéus, no sul da Bahia. Ele disse que a polícia chegou a abrir passagem para que os fazendeiros avançassem sobre os indígenas, obedecendo ordem do comandante Paulo Augusto Santana.
“A Polícia chegou à ocupação com uns 20 homens. O comandante se apresentou dizendo que tinha sido enviado para intermediar o conflito. Eu falei que a gente só sairia com determinação judicial de reintegração de posse. O comandante me perguntou se eu tinha documento que comprovasse que a área pertencia aos indígenas. Eu mostrei dois mapas da demarcação original. Ele, então, pegou os mapas e foi na direção das caminhonetes que estavam chegando na estrada. Eu pensei que o comandante ia tentar convencer o pessoal a voltar, mas ele mandou os policiais botarem as viaturas de lado e abriu passagem pros fazendeiros”, contou.
“Os fazendeiros chegaram atirando. E batendo com pedaço de pau e pedra. Minha irmã levou um tiro. Eu fui pegar ela e levei um também. Caímos os dois juntos. Eu gritava pra polícia tirar a gente dali, pra nos levar pro hospital, mas eles não nos atenderam. Ela me disse que a respiração dela estava curta, que não ia resistir. Foram as últimas palavras dela. Quando chegamos ao hospital, ela já estava morta”, completou Cacique Naílton.
Entre os presos em flagrante após a morte de Nega Pataxó estavam dois homens ligados aos ruralistas. O estudante de veterinária José Eugênio Amorim, de 20 anos, foi apontado como autor do disparo que matou a liderança indígena. O outro é o policial militar da reserva Antônio Carlos Santana Silva, de 60 anos, que teria disparado contra Cacique Naílton.
Silva e Amorim estavam entre as 200 pessoas que atenderam a convocação do grupo Invasão Zero, criado há menos um ano para impedir a ocupação da Fazenda Ouro Verde, na cidade baiana de Santa Luzia. Atualmente, o movimento possui cerca de 5 mil integrantes espalhados por nove estados e inspirou até a criação de uma Frente Parlamentar de mesmo nome no Congresso Nacional – lançada em outubro de 2023, com a presença do ex-presidente Jair Bolsonaro e do ex-ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente.
“Os integrantes do Invasão Zero são milicianos. Tem policial sem farda dentro do grupo. O que a gente não contava é que tinha policial fardado ajudando no trabalho de pistolagem também”, disse Cacique Naílton.
Comandante da PM teria dito que não poderia proteger indígenas
Foi a partir da mobilização feita pelo grupo de Whatsapp Invasão Zero, na Bahia, que os ruralistas se concentraram um dia depois da ocupação indígena da Fazenda Inhuma para retirar os indígenas do local à força.
Para os pataxós hã-hã-hãe, o local é uma das várias áreas que integravam a demarcação original da Terra Indígena Caramuru-Catarina Paraguaçu, de 1926, mas que foram desmembradas pelo Serviço de Proteção ao Índio e posteriormente e vendidas ilegalmente. Eles chamam a fazenda de Varadouro Valadares.
Cacique Aritanã, de 37 anos, assim como Naílton, também foi baleado durante a ação dos fazendeiros. Ele contou que, antes do ataque, alertou ao comandante Paulo Augusto Santana, da PM, que ele não poderia abrir espaço para o avanço dos ruralistas, mas ouviu uma resposta que pode ser interpretada, no mínimo, como uma omissão.
‘Eu gritava pra polícia tirar a gente dali, pra nos levar pro hospital, mas eles não nos atenderam. Ela me disse que a respiração dela estava curta, que não ia resistir.’
“Eu vi ele tirando as tropas da frente. Ainda disse que, o que fosse acontecer, seria responsabilidade dele. Mas o comandante me disse que não poderia fazer nada, porque era muita gente para poucos policiais”, relatou.
Aritanã foi atingido próximo das costelas. O tiro perfurou seu intestino e ele passou 10 dias internado, em leito vizinho a Cacique Naílton. Durante a fuga, entrou na mata fechada e calcula que caminhou mais de cinco quilômetros para escapar de seus algozes. É ele que aparece em um vídeo, que circula pela internet, amparado por um parente com o rosto pintado, enquanto ainda tentava fugir.
A Polícia Militar da Bahia, em nota, confirma que foi aberto na corregedoria “um feito investigatório” para apurar as denúncias “após um confronto entre indígenas e fazendeiros”. Os PMs envolvidos nesta operação eram da 8ª Companhia Independente da Polícia Militar de Itapetinga e da Cippa Sudoeste do estado.
Indígenas acusam PM de tortura na véspera dos disparos
Outro indígena conta que, véspera dos ataques na fazenda Inhuma, já havia uma ação articulada entre policiais e ruralistas. Em entrevista ao Intercept, Itamar Cardoso Oliveira, de 32 anos, disse que se dirigia com mais cinco parentes para se juntar à ocupação indígena, quando foram perseguidos por policiais na estrada. Temendo represálias, decidiram retornar, mas ainda assim foram abordados e torturados pelos PMs.
“Chamaram a gente de vagabundo. Nos mandaram abaixar a cabeça e ficar quietos. Bateram com pedaços de tábuas nas minhas costas e chutavam os dedos dos meus pés. O tempo todo eles perguntavam onde é que a gente tinha escondido as armas. Só que a gente não tínhamos arma nenhuma”.
Durante a abordagem, contou Oliveira, os agentes levaram uma câmera, celulares e cortaram os pneus das motos usadas no deslocamento. No dia seguinte, machucado, Itamar não conseguiu juntar-se aos outros ocupantes da fazenda.
Em um vídeo que circulou pelas redes sociais, Itamar Oliveira aparece com as costas cheia de hematomas enquanto outro indígena, identificado apenas como Macuña, narra a atuação dos policiais durante a morte de Nega Pataxó.
No dia seguinte à morte de Nega Pataxó, a ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, visitou a reserva Caramuru-Paraguaçu, depois de participar da cerimônia de sepultamento da liderança indígena. Ela conversou com Itamar e os caciques Naílton e Aritanã. Depois, determinou a abertura de um inquérito da Polícia Federal.
A ministra foi procurada para falar sobre o assunto, mas sua assessoria alegou que ela estava de licença médica, após passar três dias internada por apresentar picos de pressão alta. Os policiais federais estiveram na área do conflito e colheram depoimentos de moradores.
Outros indígenas que não quiseram se identificar gravaram vídeo relatando que crianças, idosos e mulheres foram igualmente perseguidos e espancados pelos integrantes do grupo Invasão Zero, novamente com a conivência dos policiais.
Policiais aparecem nos vídeos dos próprios fazendeiros
Os próprios vídeos feitos pelos integrantes do movimento Invasão Zero durante a desocupação reforçam a tese sobre a ligação entre fazendeiros e a PM da Bahia.
O primeiro deles mostra a concentração de caminhonetes na ponte do rio Pardo, enquanto o narrador descreve que o grupo está se indo fazer a reintegração de posse da fazenda “com o apoio de policiais militares e da Cippa, a famosa Catingueira”.
O segundo vídeo mostra um mostra indígenas dançando no alto da estrada, no que parece ser um ritual de guerra. A câmera vira para a direita e mostra rapidamente um grupo de policiais, que estão virados de costas para o confronto.
Procurado pela reportagem, o coordenador geral do movimento Invasão Zero, LuizUaquim, respondeu, por meio da assessoria de imprensa do movimento que “as alegações de que o Invasão Zero é um grupo miliciano são infundadas e carecem de qualquer evidência substancial, principalmente no caso da invasão da propriedade rural, onde ocorreu a tragédia, por um grupo de homens armados, encapuzados e que só depois se nomearam de movimento indígena. Quem invade encapuzado e armado, decerto invade o que não é seu”, declarou.
Uaquim, que é fazendeiro em Ilhéus, no sul da Bahia, garantiu que “todas as nossas ações e em nossa cartilha de conduto é proibido qualquer uso de arma” e justificou o ataque com base no artigo 1.210 do Código Civil, que prevê o direito “ao desforço imediato se a vítima do esbulho agir imediatamente após a agressão”.
“Por isso agimos de imediato e, frise-se, sempre com o apoio da Polícia Militar. Outras situações como essas já ocorreram anteriormente e as negociações foram exitosas. Lamentamos, mais uma vez, o desfecho desse recente episódio”.
PM apagou nota que dizia que indígenas deram o primeiro disparo
A operação de segurança realizada pela polícia militar no confronto de Potiraguá foi coordenada pela 8ª Companhia de Polícia Militar Independente, da cidade de Itapetinga.
Após a operação, a assessoria de comunicação da própria companhia de polícia, em nota, disse que 17 indígenas invadiram a fazenda e “fizeram dois vaqueiros de reféns, que liberaram no decorrer da manhã”. A nota ainda afirma que alguns indígenas estavam com o rosto coberto e “armados com rifles, revólveres, pistolas e espingardas”. A PM, então, montou uma operação para acompanhar a situação, com seis viaturas.
‘Bateram com pedaços de tábuas nas minhas costas e chutavam os dedos dos meus pés. O tempo todo eles perguntavam onde é que a gente tinha escondido as armas.’
A nota ainda relata que o primeiro disparo partiu dos indígenas e, a partir disso, generalizou um confronto “com disparos de arma, pedras e flechadas”. E finaliza dizendo que três pessoas ficaram feridas, sendo dois indígenas e um fazendeiro. Não há menção aos outros seis indígenas que chegaram a ser hospitalizados em Ilhéus, uma delas com o braço quebrado.
Essas informações foram reproduzidas em alguns sites da região, mas a nota oficial foi apagada do instagram da 8ª CPMI, dois dias depois do ocorrido.
Depois, a assessoria de comunicação social da PM Bahia emitiu nova nota, muito mais resumida. Nesta nova versão, a PM reconhece que “deram entrada no hospital outras seis pessoas com ferimentos provenientes do embate”.
O Intercept entrou em contato com a companhia de polícia de Itapetinga, que só afirma reconhecer as notas publicadas no seu instagram. Também entrou em contato com o subcomandante capitão Paulo Augusto Santana, que não atendeu o telefone e nem respondeu as mensagens que lhe foram enviadas.
Também procurado pela reportagem, o comandante do batalhão, major Alécio Marques de Andrade, resumiu-se a declarar que “só quem tem autorização para passar informação é a PM em Salvador”.
A Polícia da Bahia não respondeu se os policiais investigados foram presos ou afastados de suas atividades durante a apuração do caso.
Para os indígenas, a prisão dos dois homens não é consolo suficiente para a morte de Nega Pataxó. “Eu creio que só vai ser feita justiça quando o comandante dessa operação for demitido e perder a farda. Prender duas pessoas e achar que está tudo resolvido não tem lógica”, concluiu cacique Naílton.
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