No início da campanha eleitoral, a aposta da mídia, de aliados ao bolsonarismo e até de alguns nichos da esquerda era de uma Dilma vilã, ainda queimando na fogueira do impeachment, escondida do palanque de Lula e apagada na galeria de fotos das redes sociais. A vida real cuidou de virar isso pelo avesso.
Em uma temporada de ataques contra as mulheres do jornalismo e da política, a ex-presidente chega ao final do primeiro turno como sinônimo de dignidade, substantivo feminino e feminista que significa honradez. E, desta vez, não vem, do latim dignitate, vem debaixo do chão da coragem.
Logo no primeiro comício de Lula e Fernando Haddad, em agosto, no vale do Anhangabaú, em São Paulo, a massa quebrou o script e o cerimonial e pediu uma fala de Dilma, em coro puxado com o jornalista Chico Pinheiro. “Eu não vou conseguir falar, vou começar a chorar, vai ser um vexame. Já estou chorando”, discursou ela. Neste momento, recebeu o abraço de Geraldo Alckmin, vice na chapa PT-PSB, e um afago de Janja, mulher do ex-presidente. Os eleitores acabavam de escalar, de forma definitiva, Dilma Rousseff no elenco da caravana petista de 2022.
Como se fosse um ato permanente de desagravo, o anúncio de Dilma nos eventos de campanha virou o capítulo “fado tropical”, a hora do sentimento… e do choro. A cena foi exatamente essa na tarde da segunda-feira, seis dias antes do 2 de outubro, no auditório Celso Furtado, no paulistano Anhembi, durante a Super Live Brasil da Esperança. Tão celebrada quanto Lula, ela recebeu o aceno da Família Quilombo, na voz de Adriana, mãe de Dandara e de Akins: “A democracia foi construída com luta e com dores, né, presidenta Dilma?”
A cumplicidade no olhar das duas mulheres atravessou a multidão como as notas do “Backlash blues” de Nina Simone. Não havia como não lembrar o voto do então deputado Jair Bolsonaro louvando a tortura sofrida por Dilma nos porões da carnificina de Brilhante Ustra, o coronel das trevas na ditadura militar brasileira. Aquele voto que não mereceu repulsa (nem sororidade) de uma gente com desejo de sangue e golpe nas ventas.
Dias antes do manifesto da Família Quilombo, Dilma recebera um depoimento com o peso de uma revisão histórica. “Ontem pude olhar nos olhos da Presidenta Dilma e pedir perdão. Perdão por ter propagado o antipetismo, o discurso golpista e o ódio à esquerda”, divulgou Felipe Neto nas redes sociais, em post ilustrado com a foto dos dois. Em live no seu canal, o youtuber disse que Dilma era “um ser humano incrível” e que foi importantíssimo ser perdoado.
A campanha eleitoral, que se anunciava como mais uma temporada solitária, foi o reencontro suado com as multidões.
A inevitável leveza de Dilma ganhou também uma confirmação jurídica. Nessa mesma campanha, em 21 de setembro, o Ministério Público Federal arquivou o inquérito que serviu de desculpa para o impeachment, aquele por onde passou a ciclovia do cinismo nacional – o das tais pedaladas fiscais. Aqui jaz, no cemitério da burocracia de Brasília, um golpe parlamentar e midiático travestido de impeachment.
O ano político da ex-presidente havia começado com uma declaração de Mano Brown que se tornaria um acerto profético ao longo das atividades eleitorais. “Posso falar? Dilma é uma das mulheres mais injustiçadas da história do Brasil”, disse o autor de “Sobrevivendo no inferno”, em 17 de março, no encontro para divulgar seu podcast Mano a Mano.
Os últimos meses de Dilma no poder contaram por cem anos de solidão. Em imagens e melancolia, está tudo no documentário “Alvorada”, dirigido por Anna Muylaert e Lô Politi. Uma mulher só entre as gavetas reviradas de uma mudança. Para onde?
A campanha eleitoral, que se anunciava como mais uma temporada solitária, foi o reencontro suado com as multidões. Luiz Inácio Lula da Silva pode consolidar a sua vitória domingo, em primeiro turno; Dilma Rousseff já foi eleita, por antecipação, como senhora Dignidade da política brasileira neste 2022 em que o machismo e a misoginia – vide ataques do presidente Bolsonaro às mulheres – seguiram impondo o ritmo do jogo sujo.
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