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‘Como vou sustentar a casa sem o auxílio?’: o relato de uma moradora da periferia do RJ

Irmã Neném contraiu covid e teve de parar de fazer empadinhas. Com a redução do auxílio prevista, a família de seis filhos pode ser jogada na miséria.

‘Como vou sustentar a casa sem o auxílio?’: o relato de uma moradora da periferia do RJ

‘Como vou sustentar a casa sem o auxílio?’: o relato de uma moradora da periferia do RJ

Foto: Dan Kitwood/Equipe via Getty Images

Conheci Lauderlândia Pereira, a “Irmã Neném”, no início de 2018, em minhas pesquisas com os evangélicos moradores de favelas de Campos dos Goytacazes, norte do Rio de Janeiro. Integrante de uma das dezenas de pequenas igrejas pentecostais da região, logo percebi que era uma das líderes religiosas do bairro onde morava. Mas sua atuação ultrapassava o templo pentecostal.

Dividia uma casa de cinco cômodos com os seis filhos, três meninas, com 14, 16 e 17 anos, e três meninos, com dois, 12 e 18 anos. O filho mais velho começava a trabalhar na construção civil. O neto de oito meses era o mais jovem integrante da família. Na casa sempre bem arrumada, de móveis simples, cujos quartos eram divididos por cortinas, a Irmã Neném costumava receber cotidianamente vizinhos em busca de amparo e orações. Diarista, também presidia um programa social, em parceria com uma ONG, que atendia dezenas de crianças e adolescentes, oferecendo atividades de recreação e de orientação pedagógica. Com a pandemia, as atividades do programa foram suspensas.

Negra, de postura altiva, a Irmã Neném era dona de um sorriso amplo e de um espírito amável.

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Em agosto, a postura da Irmã Neném mudou. Embora conserve o sorriso, emagreceu muito. Se em 2018 conheci uma mulher dinâmica e de gestos vastos, hoje apresenta dificuldades para se locomover e dores nas pernas e na cabeça, que a levam a passar grande parte do dia deitada. Os sintomas que enfraquecem e impedem aquela outrora ágil mulher de 41 anos de trabalhar e de continuar com suas atividades religiosas são sequelas da infecção pela covid-19 que ela contraiu em sua forma mais grave. Esteve dez dias internada, entre 30 de junho a 9 de julho, na UTI do Hospital São José, em Goytacaz, cidade vizinha a Campos. Na internação, passou três dias inconsciente. Por conta da covid-19, teve dois acidentes vasculares cerebrais (AVCs) e o comprometimento de 60% dos pulmões. Ela descreve o período como “apavorante”. Contou-me que assistiu à morte de três pessoas.

Impossibilitada de trabalhar, a Irmã Neném vive do auxílio emergencial. Foi o benefício de 1.200 reais que a ajudou a sustentar a família no período mais grave da doença e na compra dos medicamentos para sua recuperação. Hoje, além das preocupações com a própria recuperação, teme pela redução do auxílio, já anunciada pelo presidente.

O caso de Irmã Neném, que mesmo após a alta sofre com as consequências da covid-19, está longe de ser uma exceção. Nas favelas do Rio de Janeiro e de Campos, conheci dezenas de outras mulheres – também negras e provedoras de suas famílias – que estão incapacitadas para o trabalho pelas sequelas da doença. Para elas, não há tratamento de fisioterapia ou de fonoaudiologia como os doentes das camadas médias costumam obter. Para elas, o preço dos medicamentos necessários para amenizar os efeitos da doença representa uma soma muito mais alta do que a quantia recebida pelo auxílio emergencial pode pagar. Para elas, seguir a vida após a covid-19 pode ser um pesadelo tão grande quanto o adoecimento pelo coronavírus.

No relato abaixo, Irmã Neném revela como é o cotidiano marcado pela dor física e pela angústia. Devido à debilidade causada pela doença, fez o relato deitada na cama que divide com uma das filhas. A voz, anteriormente forte, também estava enfraquecida.

‘Como vou sustentar a casa sem o auxílio?’: o relato de uma moradora da periferia do RJ

Antes da doença, Irmã Neném presidia uma ONG de amparo a crianças e adolescentes.

Foto: Arquivo Pessoal

Depois que peguei essa covid, fico muito cansada. Quase não saio da cama. Dói. Estou sentindo muitas dores nas pernas. Tem uns meses já que dói demais. Os pés doem embaixo. Acho que é a idade também [abre o costumeiro sorriso].

A doutora do hospital falou que a covid pode deixar essa sequela nas pernas. Trombose. Estou achando que é, porque está doendo muito. Mesmo com as pernas para cima, passando arnica e ficando deitada, dói, dói. As varizes estão salientes. Está doendo demais, irmã. Acho que vou ter que ir ao médico de novo; mas, olha, não aguento mais ir ao médico. Quando fala em ir ao médico, chego a sentir o coração saltar. Está difícil conseguir consulta nos postinhos. No SUS, só Jesus mesmo. E depois, eles pedem um monte de exame, exame, exame. Creio que Deus vai entrar com uma providência na minha vida, porque só o Pai mesmo. Mas está bom. É uma provação.

Fico preocupada também com a redução do auxílio. Se esse homem [Bolsonaro] reduzir mesmo, vai ser só a misericórdia de Deus. Além de ter seis filhos e um netinho, depois que fiquei doente, estou tomando muitos remédios e tendo que pagar médico por fora às vezes.

Antes de ficar doente era difícil, mas não tanto. No início da pandemia, perdi trabalho. Já recebia o bolsa família antes da pandemia, então o auxílio foi bom. Recebi o de 1.200 reais. De início, foi um alívio. Deu para levar tudo direitinho.

Na quarentena, as crianças sem escola. Tivemos que ficar dentro de casa. Aquele monte de criança, que come a beça. Aumentaram os gastos. Mas a gente apertava e dava para levar. Era difícil, mas dava.

Depois que fiquei doente, o auxílio foi ainda mais importante. Primeiro porque me ajudou a pagar os remédios. Foram muitos remédios. Calmantes, remédios para o cérebro, para o coração. Tive dois AVCs. Muitos medicamentos eu não encontro no posto. Estou gastando na base de uns 400 reais. Também foram muitos exames. Alguns tive  que pagar particular. Tive que pagar até consulta particular. Só um eletro custou 500 reais. Meus amigos e meus parentes me ajudaram.

‘Fico preocupada também com a redução do auxílio. Se esse homem [Bolsonaro] reduzir mesmo, vai ser só a misericórdia de Deus’.

O que sobra é para sustentar a casa. Comprar comida. O médico mandou fazer dieta. Tive que comer legumes. Tem o leite do meu filho caçula. Do meu netinho. Fralda. É a renda que tenho. São seis filhos e um neto. Mesmo com o auxílio como tava, já estava difícil porque estou sem trabalhar. Vai ser muito difícil manter os remédios. Fico preocupada de ter que parar o tratamento. E esse monte de exame que ainda tenho que fazer? Vai ser muito difícil levar a vida e manter os remédios.

Nós estamos aqui orando [pelo presidente] para Deus tocar no coração dele; para ele ter misericórdia do povo. Porque, assim como eu, tem várias pessoas que estão até piores do que eu e precisam desse auxílio, porque não têm outra renda. Eu não tenho outra renda.

O meu filho mais velho está começando a trabalhar na construção. No momento, estou em casa. Acordo cedinho, faço um mingauzinho para os meus filhos. Aí, tomo meu remédio e fico meio grogue. O médico passou calmantes, porque eu fiquei sentindo muita dor de cabeça, muita dor de ouvido, uma dor desesperadora. O doutor falou que eu não estava tendo oxigênio direito no cérebro. Tem dia que me sinto melhor. Tem dias que me sinto muito mal. Hoje, por exemplo, estou muito tonta, além da dor das pernas.

Tem dia que fico sem paciência, sabe? Agoniada. Até o choro do meu neto me incomoda. Me dá uma agitação. Tenho tomado muito remédio. Essa é a parte mais triste, porque eu não me conformo de tomar muito remédio, mas sei que é necessário. Me sinto fraca. Está sendo uma coisa meio complicada, mas creio que vai ser uma etapa e que eu vou melhorar. Não creio que vou passar toda a vida tomando esses remédios. Toda vida cansada. Fico muito cansada; se andar muito, me canso; se falar muito, me canso. Então, as coisas ainda não voltaram para o lugar, mas vão voltar.

Mas eu passei por uma prova muito grande com essa covid no hospital. Achava que não ia voltar para casa. Eu lembro que comecei a sentir dor de cabeça, a ter febre. Foi uma semana assim. Um dia, a dor ficou insuportável e eu só me lembro de acordar no hospital. Fiquei três dias “aérea”, desacordada. Só depois de três dias é que fui tomar altura de que estava no hospital. Fiquei confusa, os médicos falaram que tinha dado AVC, que eu estava com covid. Nos primeiros dias, fiquei muito apavorada, até a ficha cair que eu estava no hospital. Foi apavorante. Fiquei com medo pelos meus filhos, meu neto. Medo deles terem pegado também. Fui bem cuidada. Um doutor bom, e as enfermeiras foram boas para mim também. O maior problema era que a pressão não baixava nem com o medicamento. Foi uma luta muito grande para a pressão estabilizar. Foi Deus quem iluminou os médicos para eu sair de lá boa.

‘Despertei e tomei noção de que estava na UTI. Eu olhava para a pessoa que estava ao meu lado e, dali a pouco, a pessoa morria’.

Uma coisa que nunca vou esquecer é que, depois que eu despertei e tomei noção de que estava na UTI cheia de aparelhos, eu olhava para a pessoa que estava ao meu lado e, dali a pouco, a pessoa morria. Durante os dez dias que fiquei lá, três pessoas faleceram. Vi pessoas com 80% do pulmão tomado pela doença. Pessoas com os pulmões cheios de secreção. Em alguns, a doença tomou os rins. Pessoas que não conseguiam tossir. Um monte de secreção. É uma coisa apavorante. Porque em vez de as pessoas melhorarem, elas pioravam. Numa hora, a pessoa estava do seu lado, na outra hora estava dentro de um saco preto. E no mesmo instante, chegavam outras pessoas também com um quadro pior do que aquele que tinha morrido. A covid é apavorante. É uma doença que vem e se não for a misericórdia de Deus para socorrer a tempo, ela toma tudo e come todos os órgãos. É horrível.

Tem gente que não acredita. O presidente mesmo está vendo essa doença como uma simples gripe. Faz pouco caso. Ele fala assim porque não ficou num leito de hospital com os pulmões cheios de secreção. Ele não está tratando essa doença como a doença séria que é. Ela já matou milhões em todo mundo. Ele em si [o presidente] não está tendo a postura de agir como deve agir, que é de cuidar do povo. Para completar, ainda quer diminuir o auxílio. E quantas pessoas tiveram essa doença, sobreviveram, mas ficaram com sequelas? Como vão sustentar a casa? Os filhos? É uma situação muito triste. Tem quadro que não reverte. Não é uma gripezinha. É uma doença devastadora. Principalmente para quem tem doenças crônicas. A covid devasta os órgãos.

Mas eu tenho fé que Jesus vai me tirar dessa cama. Hoje, estou vivendo igual ao povo do deserto da Bíblia, um dia de cada vez. O povo recebia o maná de Deus, mas não podia acumular. Era o alimento para um dia. Assim estou vivendo. Um dia de cada vez. Vivendo pela fé. Mas como vou conseguir sem o auxílio? Deus vai dando providência, enviando pessoas para ajudar. Mas tenho fé que vou retomar a vida e abrir minha barraca para vender minhas empadinhas. Jesus vai me restaurar. Tenho fé”.

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