Cecília Olliveira

Coronavírus: no Rio, ajuda humanitária é interrompida à bala

Operações da polícia e tiroteios não param durante a pandemia. Agora, impedem a entrega de cestas básicas e matam quem só quer ajudar.

A soldier holds his gun as he walks along an alley of the Jacarezinho favela in Rio de Janeiro, Brazil, during a pre-dawn crackdown on drug gangs on August 21, 2017. Apu Gomes (Photo credit should read APU GOMES/AFP via Getty Images)

A crise do coronavírus

Parte 122


Coronavírus: no Rio, ajuda humanitária é interrompida à bala

Homem armado caminha na favela do Jacarezinho, Rio.

Foto: Apu Gomes/AFP via Getty Images

Desde que começou a quarentena no Rio, em 13 de março, ocorreram 41 tiroteios no Complexo do Alemão, 11 em Cordovil e cinco no Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro. Os dados do Fogo Cruzado revelam que, em abril, apesar da queda nos tiroteios (27%), a proporção de tiroteios com presença de agentes de segurança aumentou 7 pontos percentuais na região metropolitana do Rio. A pandemia tem desnudado as mazelas antigas e já naturalizadas para muitos moradores de favelas e periferias cariocas.

Uma das mais graves ocorreu na sexta-feira, dia 15, quando a polícia matou 13 pessoas, e moradores foram obrigados a carregar corpos pelas ruas, deixando um rastro de sangue pela comunidade.

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar

Esse cotidiano violento, que antes da pandemia já interrompia aulas, fechava ruas e unidades de saúde e impedia pessoas de executar as tarefas mais simples do dia a dia, agora mostra uma nova face: torna difícil socorrer quem precisa de ajuda durante a crise do coronavírus.

Há um mês, o prefeito do Rio, Marcelo Crivella, anunciou a entrega de cestas básicas como uma das medidas para contenção ao coronavírus. Desde a campanha eleitoral Crivella diz que seu objetivo é “cuidar das pessoas”. Mas o prefeito parece não ter pressa. As cestas ainda não chegaram. Com isso, as pessoas têm se virado como podem. Sociedade civil e moradores não esperaram sentados, pois de onde nada se espera é que não sai nada mesmo. Mas há mais barreiras que as naturais.

No fim de semana do Dia das Mães, famílias receberiam cestas básicas distribuídas pela ONG Rio de Paz, mas a organização, que atua no Jacarezinho há mais de uma década, precisou cancelar o auxílio devido a um tiroteio que ocorreu durante uma operação do Bope, que acabou com quatro feridos – dois deles, PMs. A ação humanitária foi retomada somente no fim da tarde.

Em 30 de abril, foi a vez da equipe do “Gabinete de Crise do Alemão” – criado pelos grupos Papo Reto, Mulheres do Alemão e o Voz das Comunidades – ter uma doação impedida à bala por uma ação policial. De acordo com o Raull Santiago, um dos membros do gabinete, que distribui alimentos e produtos de limpeza a 15 favelas que compõem o Complexo, “a polícia achou que era um caminhão roubado, entrou na favela e virou um tiroteio danado”. Cem cestas básicas não puderam ser entregues. Renata Trajano, que estava coordenando as doações, se abrigou na casa de moradores.

Dois dias antes, uma ação truculenta da polícia (e aparentemente injustificável) matou o corretor de imóveis Leandro Rodrigues, de 40 anos. Rodrigues foi assassinado com um tiro de fuzil no dia 28 de abril, em Cordovil, a menos de 10 km do Alemão, após entregar uma cesta básica a um amigo do trabalho, que está passando por dificuldades por causa da pandemia.

E a história piora.

Na delegacia, os depoimentos foram contraditórios. Primeiro, o policial militar Bruno Bahia do Espírito Santo disse que Rodrigues “seria bandido” e que atirou contra a guarnição de dentro do carro. Depois, que saiu do carro e atirou após abordagem. Não foram apresentadas outras vítimas ou pessoas apontadas como comparsas da vítima. A OAB do Rio entrou no caso.

E piora mais.

A família demorou dois dias para ter notícias de Rodrigues. Acharam o carro dele estacionado no pátio da delegacia de homicídios após acessar o GPS do veículo.

Uma reportagem de Rafael Soares na Revista Época fez uma análise de todas as informações disponíveis sobre 195 mortes por intervenção de agentes do estado ocorridas em julho de 2019 — até então, o mês mais letal das últimas duas décadas. Resultado: ao menos 12 casos de mortes cometidas pela polícia do Rio, em um único mês, apresentados à população como “confronto com bandidos”, têm indícios graves de erro policial, em que inocentes foram mortos por engano, ou execução à margem da lei”.

A Defensoria Pública do Rio pediu uma investigação independente sobre as mortes no Alemão. O defensor Daniel Lozoya lembrou que essa não foi a primeira chacina cometida pela polícia ali – e o Brasil já foi condenado internacionalmente por causa disso.

Rodrigues é só mais um confundido com bandido que morreu pelas mãos da polícia. Trajano quase se tornou uma vítima. No Alemão, em meio a uma pandemia, moradores tiveram de carregar mortos à bala.

São muitos casos que fazem da exceção a regra para muita gente. E isso é inadmissível.

S.O.S Intercept

Peraí! Antes de seguir com seu dia, pergunte a si mesmo: Qual a chance da história que você acabou de ler ter sido produzida por outra redação se o Intercept não a tivesse feito?

Pense em como seria o mundo sem o jornalismo do Intercept. Quantos esquemas, abusos judiciais e tecnologias distópicas permaneceriam ocultos se nossos repórteres não estivessem lá para revelá-los?

O tipo de reportagem que fazemos é essencial para a democracia, mas não é fácil, nem barato. E é cada vez mais difícil de sustentar, pois estamos sob ataque da extrema direita e de seus aliados das big techs, da política e do judiciário.

O Intercept Brasil é uma redação independente. Não temos sócios, anúncios ou patrocinadores corporativos. Sua colaboração é vital para continuar incomodando poderosos.

Apoiar é simples e não precisa custar muito: Você pode se tornar um membro com apenas 20 ou 30 reais por mês. Isso é tudo o que é preciso para apoiar o jornalismo em que você acredita. Toda colaboração conta.

Estamos no meio de uma importante campanha – a S.O.S. Intercept – para arrecadar R$ 250 mil até o final do mês. Nós precisamos colocar nosso orçamento de volta nos trilhos após meses de queda na receita. Você pode nos ajudar hoje?

Apoie o Intercept Hoje

Inscreva-se na newsletter para continuar lendo. É grátis!

Este não é um acesso pago e a adesão é gratuita

Já se inscreveu? Confirme seu endereço de e-mail para continuar lendo

Você possui 1 artigo para ler sem se cadastrar