Ao perceber a perda de apoio popular por relativizar a quarentena pela pandemia de coronavírus, Jair Messias Bolsonaro e os intelectuais de sua cúpula prepararam uma contraofensiva para reajustar sua base social, aumentando o tom de seu discurso cristão. Em resposta ao contexto mundial e brasileiro de pandemia de covid-19, acirrou ainda mais a associação de seu governo ao cristianismo, evocando uma espécie de “guerra dos deuses”, como definida pelo sociólogo Michael Lowy.
A ação começou a ser orquestrada no início de abril, quando conclamou um jejum nacional para o Domingo de Ramos. No domingo seguinte, dia 12, Páscoa, a ressurreição de Cristo e de sua vitória sobre a morte foram comparadas pelo presidente à facada que sofreu no processo eleitoral de 2018. Nesta semana, a evocação religiosa teve um novo capítulo com a posse do novo ministro da Justiça, o advogado e pastor prebisteriano André Mendonça. Mendonça, a quem Bolsonaro chamou de “terrivelmente evangélico”, chamou o chefe de “profeta” contra a criminalidade e disse ser seu “servo”.
Nessa aposta pela retomada do apoio popular, os intelectuais do governo miraram usaram recursos já usados em julho de 2019, quando relacionaram a imagem de Bolsonaro com a figura de Jesus Cristo. Na semana de Páscoa, o mesmo expediente foi explorado sob o pretexto da celebração da morte e ressurreição de Cristo. O uso da alegoria da Páscoa deu uma nova construção da imagem de Bolsonaro, a do servo sofredor que venceu a morte para defesa da nação.
O apelo à religião é usado como estratégia de comunicação para manter o caráter autoritário de seu governo – é o que chamo de “cristofascismo brasileiro”. E esse cristofascismo se estabelece porque o bolsonarismo fabrica intencionalmente uma “guerra dos deuses” a partir de uma teologia do poder sustentada na memória do cristo europeu colonizador: sacrificialista e expiatório das minorias sociais.
É nessa guerra pelo Deus cristão que Bolsonaro alimenta a base do governo autoritário ao reforçar sua gestão do ideário maniqueísta. Ao se assumir como presidente dos cristãos, simplifica os conflitos políticos, que passam a se dar em embates entre bem versus mal. Nesse arranjo, a guerra dos deuses se traveste na luta entre aqueles que representam o mal – em uma alegoria caricatural dos “comunistas” ou dos “petistas” – e entre aqueles também alegoricamente expressos como cidadãos de bem.
A artimanha construída na Páscoa pela cúpula do presidente o desenha numa cristologia profana, apontando-o como messias, servo sofredor, ungido e eleito da nação. Faz isso para reagrupar as forças a fim de manter, a duras chicoteadas, a implementação de medidas ultraliberais que hoje entregam à morte os mais vulneráveis. Ao reeditar características cristológicas sobre a trajetória de Bolsonaro, visam sensibilizar setores religiosos para apoiar as atitudes de irresponsáveis da relativização da quarentena da covid-19.
O bolsonarismo sublinha uma “guerra bíblica”, lutada no interior do estado brasileiro, arrotando versículos bíblicos por ser uma maneira fácil e “santa” de se comunicar com o fundamentalismo cristão. O intuito de Bolsonaro é promover, com a vestimenta bíblica, uma tentativa de relativizar a quarentena, colocando em risco partes da população “que podem ser descartadas, mortas”. Quando ele se desenha sob a autoridade messiânica, menosprezando a importância do isolamento (ou dizendo que o vírus já passou ou é uma “gripezinha”), aproxima-se das ideias da típica eugenia social tão operada no passado pelos governos fascistas.
Escola de Hitler
O termo “cristofascismo brasileiro” se baseia na reflexão da teóloga alemã Dorothee Sölle, que criou a expressão diante do nazismo alemão. Hitler, como Bolsonaro, tinha uma relação próxima com crentes. Ao cunhar o termo, Sölle se preocupou em analisar as relações de integrantes do partido nazi com as igrejas cristãs no desenvolvimento do estado de exceção alemão, quando o governo nazista se utilizou das relações e das terminologias cristãs para sua composição, assim como se reconhece hoje no bolsonarimo.
Hitler utilizava jargões cristãos como chaves de seus discursos como o próprio “Conheceis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8,32), e “criou Deus, o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher criou” – para defender a família tradicional cristã alemã. Hitler também fez conferências em reuniões cristãs (luteranas, católicas e confessantes), se relacionou com pastores e padres – entre os luteranos se destacam os pastores Walter Hoff, Rudolf Kittel, Prospt Ernst Szymanowski, que criaram o que o regime imperial chamava de “cristianismo positivo”.
O conceito cristofascismo também se liga ao que o pensador alemão Walter Benjamin descreve como fascismo. Para Benjamim, a barbárie fascista não representa uma regressão civilizacional, mas está contida nas próprias condições de reprodução da nossa civilização liberal e burguesa. Para o autor, a ação fascista se beneficia das concepções conservadoras sobre a moral, a família e o progresso, transformando o todo nacional em um estado de exceção efetivo. Assim, o dispositivo autoritário do bolsonarismo se projeta, a partir da associação ao religioso, para defender uma concepção simplificada de família para a eliminação de seus adversários, bem como os indesejáveis – neste caso, aqueles que não se adequam ao projeto moral de nação estabelecido.
Seu cristofascismo se promove por meio de uma teologia política autoritária pautada hoje no clima apocalíptico do coronavírus, baseada no ódio à pluralidade democrática. Esse ódio é salpicado por técnicas governamentais de promoção da discriminação, do ódio aos setores heterodoxos. Diante do avanço da pandemia no Brasil, sua característica antidemocrática se somou ao discurso economicista como justificativa para a explícita permissão da política da morte – a necropolitica discutida pelo filósofo camaronês Mbembe, cujos alvos são os pobres, os mais velhos, os diabéticos e os hipertensos.
Para compreender a construção do “mito” pascal de Bolsonaro, analiso as cenas religiosas que contribuíram para a projeção da alegoria:
Primeiro ato
Para convocar a população para o #JejumpeloBrasil, marcado para 5 de abril, foi feito um vídeo de convocatória governamental cristã, que é iniciado com o texto de 2 Crônicas 20, 3 dizendo “Jeosafá decidiu consultar o Senhor e proclamou um jejum em todo Reino de Judá”. Após o fragmento, aparece Bolsonaro dizendo “muito obrigado a todos vocês, e aqueles que tem fé e acreditam, domingo é o dia de jejum”.
Com a produção, buscava-se que os cristãos, no Domingo de Ramos, fizessem um dia do jejum, literalmente para que Deus livrasse o Brasil da praga da covid-19. Algo, que se sustenta na tradição católica de guardar o domingo antes da Páscoa, como sendo o dia da entrada de Jesus em Jerusalém, nas costas do jumento.
No vídeo, Bolsonaro convoca a população cristã para o jejum e, depois, aparece outro texto bíblico como resposta dizendo: “Não temas, nem vos assusteis por causa desta grande multidão; pois a peleja não é vossa, mas de Deus” (v.15). Na sequência de imagens, indica-se que é o rei (o governante) que tem que se colocar junto a Deus, tal como Jeosafá. Isso porque a peleja não seria dos homens e mulheres, mas de Deus. O vídeo é longo, e as lideranças evangélicas que apoiam Bolsonaro (Malafaia, os Hernandes, Valdomiro Santiago, Edir Macedo etc) chegam a afirmar que o presidente teria sido ungido para assumir a nação.
Segundo ato
Na quarta-feira, dia 8 de abril, na saída do Palácio da Alvorada, recebeu uma expedição de católicos com a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Os romeiros disseram para Bolsonaro literalmente: ‘Trouxemos a imagem de Nossa Senhora de Fátima, porque ela vai livrar o Brasil do comunismo. Porque esses erros são coordenados por nos católicos apostólicos romanos’.
No diálogo segue a conversa de um dos membros da carreata:
– “Presidente, pedimos também que Nossa Senhora derrame suas bênçãos sobre o senhor. Tem muita carga sobre você nesse momento. O senhor representa essa luta, é a luta contra o comunismo no nosso país, por isso nos oramos pelo senhor e queremos rezar uma Ave Maria pedindo as bênçãos dela, que dê força para o senhor. Que de energia para carregar o Brasil nos ombros do senhor, conte conosco com nossas orações, a vitória é nossa!”.
Na afirmação, diz que a batalha espiritual que passa o Brasil, por causa do novo coronavírus, reverbera para lutas que se enfrentam juntos aos inimigos da nação, isto é, “os comunistas”. Na última frase do diálogo, os católicos assumem o presidente como pessoa separada por Deus: “O Senhor foi levantado por Deus, foi ungido por Deus, para estar nesse momento levando nosso país”.
Terceiro ato
Nas quarta-feira, um pouco mais tarde, Bolsonaro fez um pronunciamento à nação sobre as atitudes que estava tomando diante da pandemia. No discurso, afirmou que, como presidente, o país vive momento “ímpar na história, e ser presidente é olhar o todo e não apenas as partes” – tratando para a questão do desemprego e da reclusão da covid-19. No fim do discurso, volta ao tom cristão: “Quero entregar um país muito melhor que recebeu do sucessor. Sigamos João 8,32: E conheceres a verdade, e a verdade vos libertará”.
O versículo se tornou jargão desde as eleições de 2018, quando encheu de cores bíblicas o processo político. Nas últimas palavras do vídeo, diz “Desejo a todos uma Sexta-feira Santa de reflexão e um feliz Domingo de Páscoa! Deus abençoe o nosso Brasil!” No discurso, mostra aos religiosos que conhece a temporalidade religiosa da semana de Páscoa.
Quarto ato
Na Sexta-Feira Santa, dia 9, que simbolicamente é o dia da morte de Cristo, o presidente postou, em seu perfil nas redes sociais, uma arte com o texto bíblico e a imagem de Jesus crucificado (figura 1 -). Uma imagem forte para os cristãos, casando-se com fragmento Pedro 2,24: “Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, a fim de que morremos para os pecados e vivêssemos para a justiça, por suas feridas vocês foram curados”.
Mostra que conhece outros versículos bíblicos sobre o mistério da ressurreição. Separa um versículo bíblico importante no qual resume a salvação a partir de Cristo. Utiliza um versículo bíblico dado ao apóstolo Paulo, base de muitas igrejas.
Quinto ato
No sábado, dia 11, à noite, postou um vídeo indicando sobre a facada que sofreu. Na sua fala do vídeo, informa que o atentado foi “o momento mais difícil da minha vida (pausa), eu só pedia que Deus não deixasse órfã a minha filha de sete anos”. Toma sobre si a ideia do servo sofredor, que luta para viver e para defender a nação. Os versos da música evangélica de pano de fundo do vídeo dizem: “história da minha vida, eu lutei, eu sofri, teve vezes que acertei, outras errei, a vida é uma jornada de amor e sofrimento, e o Senhor me acompanhou a todo tempo. Ele estava lá quando o mundo desabou em mim. Muitos diziam que era o fim, eu lutei com minha fé. Pelo vale da sombra da morte, o Senhor me fez mais forte e essa é a história de vida. Eu lutei, eu sofri”.
A canção embala a trajetória de Bolsonaro mostrada desde o momento da facada, a recuperação no hospital, suas orações e sua eleição. Chegando ao fim, mostra-o como exemplo de cristão na igreja, orando e ajoelhado. Nessa sua trajetória, como servo sofredor e messias político, recebe a vitória, o milagre da faixa presidencial. No vídeo, diz que isso só é possível porque “Deus preservou a vida dele”; logo, seria o enviado de Deus para o Brasil, firmado sobre o texto: “Eu me deitei e dormi. Acordei porque o Senhor me sustentou” (Salmo 3,5). Portanto, nesse quinto ato, além de apresentar-se como “bom cristão”, aquele que vai à igreja e defende a família cristã tradicional, começa a se desenhar como liderança enviada por Deus para salvar a nação, no contexto do novo coronavírus. Alguém que Jesus está ao lado, cuidando e fazendo milagres e maravilhas, como mostra a figura dele sendo operado com Jesus ao seu lado (veja abaixo).
Sexto ato
O sexto ato foi outra postagem de Bolsonaro na rede social durante o domingo de Páscoa de manhã. Usa outro fragmento bíblico a fim de demonstrar publicamente a fé a partir de texto clássico do Evangelho de João “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito, para que todo que aquele que nele crê não perece, mas tenha vida eterna” (João 3,16).
Na sequência, afirma que “Ele ressuscitou”, mostrando que tem intimidade com as Escrituras Sagradas. Isso é importante de ser descrito. Essa operação é muito bem desenhada pelo bolsonarismo, quando, além de indicar que conhece um leque de textos bíblicos, conhece também sobre a teologia da salvação cristã. Logo, acrescenta outro elemento no desenho de servo fiel a Deus, tentando satisfazer a parcela de cristãos que duvidam de sua adesão ao cristianismo.
Sétimo ato
A segunda ação do domingo de Páscoa ocorreu no encontro promovido na internet com as lideranças religiosas. No fim do vídeo, Bolsonaro diz diretamente sobre a facada que sofreu no fim de 2018. Compara o atentado à trajetória da ressureição de Cristo. Em suas palavras: “Confesso que hoje para mim foi um dia especial, já que hoje se fala de ressurreição. Eu não morri, mas estive ali no limite da morte”. De forma mais efetiva, ele destaca suas relações com Cristo dizendo que foi um milagre ter sobrevivido e ressurgido para ganhar as eleições. Por isso, se reconhece na função de “salvar” o país do caminho que estava sendo traçado.
No meio do discurso, reconhece que não tinha um perfil de chegada à presidência, deixando a entender que foi parte do milagre que Deus operou na sua vida. Saiu da “(quase) morte” (pela facada que tomou) à missão da presidência da República. Portanto, ele é um escolhido de Deus. Alguém que tem a missão de cuidar do Brasil contra o caos que estão tentando implementar com o coronavírus. Por isso, ponderou: “a responsabilidade é muito grande, a cruz é muito pesada, com milhões de pessoas do meu lado, que tem um coração verde e amarelo, que creem em Deus, acredito que podemos vencer os obstáculos”. Exalta um patriotismo ligado à metáfora da crucificação de Jesus – com o termo a “cruz é muito pesada”. Algo absolutamente planejado para que o presidente seja reconhecido como messias da nação.
Ao fim do vídeo, volta a dizer sobre a questão da quarentena: “Desde o começo, há quarenta dias temos dois problemas gravíssimos, o vírus e o desemprego. Quarenta dias começando a ir embora o vírus, mas está batendo forte a questão do desemprego, mas devemos bater forte nessas duas coisas. Obviamente lutamos sempre, acreditamos em Deus acima de tudo, vamos vencer os obstáculos”.
Como os vídeos deixam claro, o bolsonarismo verniza seu discurso com tons messiânicos de salvação política do Brasil, mas reverbera o desprezo à parcela da população mais velha, com problemas de saúde crônica, diante da possibilidade da morte. Faz isso construindo uma falsa dicotomia entre o caos social da quarentena e o desemprego que pode assolar o país. Em sua estratégia, investiu pesado na temporalidade da Páscoa, dando mostras variadas e públicas do ser cristão: mostrou ter conhecimento da história do cristianismo, da Bíblia e principalmente de fragmentos bíblicos-chaves a fim de pintar como messias cristão para voltar a mobilizar sua base conservadora religiosa.
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