Rosana Pinheiro-Machado

Rosana Pinheiro-Machado

Coronavírus: trabalhadores de serviços essenciais merecem mais que aplausos e máscaras. Precisam de apoio permanente.

Aplausos são uma parte importante dessa história, mas se envolver em ações coletivas concretas é muito mais.

Um cachorro vestido de médico passeia do lado de fora de um hospital em Londres durante o #clapforourcares (aplausos para nossos cuidadores, em tradução livre).

A crise do coronavírus

Parte 93


Um cachorro vestido de médico passeia do lado de fora de um hospital em Londres durante o #clapforourcares (aplausos para nossos cuidadores, em tradução livre).

Um cachorro vestido de médico passeia do lado de fora de um hospital em Londres durante o #clapforourcares (‘aplausos para nossos cuidadores’, em tradução livre).

Foto: Niklas Hallen/AFP via Getty Images

Com pontualidade britânica, todas as quintas-feiras, às 20h, boa parte da população do Reino Unido vai para as suas janelas aplaudir os trabalhadores do sistema nacional de saúde, o NHS, no movimento Clap for Our Carers (‘aplausos para nossos cuidadores’, em tradução livre). A cada semana é maior o número de pessoas que se somam a essa homenagem, formando uma verdadeira catarse coletiva. Curiosamente também é maior número de pessoas que se sentem à vontade para sair para passear, dar uma “escapadinha” e ignorar o distanciamento social.

Meu vizinho do prédio do lado não falha na quinta-feira. É da janela dele, porém, que vi uma pequena festa no último sábado. Na minha rua, os moradores saem cada vez mais para fazer exercícios e desfrutar lazer, em pequenos grupos como se estivessem de férias, ignorando os apelos já desesperados do governo britânico para que as pessoas fiquem em casa.

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Pela perspectiva da minha janela, vejo um mundo não muito atraente.

No Reino Unido, assim como na maior parte do mundo, um novo e importante tema tem dominado o debate público: o mundo pós covid-19. Seminários nas mais prestigiosas universidades, seção especial nos principais jornais, podcasts e conversas cotidianas de senso comum questionam se o mundo será melhor ou pior. Os aplausos ao sistema público de saúde são frequentemente trazidos à tona como um exemplo de conscientização da população na luta pela defesa dos bens públicos e uma demonstração de solidariedade e coesão coletiva.

Uma grande parte dos britânicos, apaixonados pela sua própria paixão cívica, têm exaltado os aplausos ao NHS como a prova cabal de sua grande nação e valorização de sua maior conquista social, o sistema público de saúde universal e gratuito. Mas suspeito que aquilo que começou como um movimento espontâneo e de baixo para cima esteja se transformando em vã espetacularização, descargo de consciência ou até mesmo o escudo de uma grande hipocrisia daqueles que, como bem disse a humorista Tatá Werneck se referindo ao Brasil, dizem para ficar em casa em público, mas saem às ruas desnecessariamente.

Da janela da minha casa, observando aplausos na janela e abraços nas portas, tenho me perguntado sobre os significados de solidariedade social em meio a uma pandemia. Não quero menosprezar os aplausos. Deixo claro que, pontualmente às quintas-feiras, aplaudo os trabalhadores da saúde com convicção e emoção. Mas precisamos refletir criticamente sobre a diferença entre heroísmo e solidariedade.

Como precisamente colocou a professora Sarah Cooper-Knock, heróis precisam de audiência; os trabalhadores, de aliados. O heroísmo está fortemente vinculado à ideia de um indivíduo que se destaca superando a estrutura social. Heróis podem estar na guerra e em perigo diariamente; trabalhadores, não. O princípio da solidariedade é outro. Ele recoloca o trabalho numa estrutura política e econômica e nos faz questionar: em que condições  estão expostos os trabalhadores e por que razões? Essa é uma pergunta essencialmente política.

Trabalhadores que estão na linha de frente merecem aplausos, mas precisam principalmente máscaras, luvas e roupas especiais. No mundo pós-Brexit, o primeiro-ministro Boris Johnson, quando saiu da UTI, agradeceu nominalmente aos enfermeiros imigrantes de Portugal e Nova Zelândia que incansavelmente cuidaram de sua saúde. Mas isso se transformará em uma política justa e humanitária de imigração? Indo além, vale lembrar do escândalo de o Reino Unido não ter entrado, por puro orgulho, no esquema de compra conjunta de equipamentos de proteção individual, os EPI, da União Europeia. A oposição acusa o governo de ter perdido a oportunidade de compra por motivação política.

A situação britânica é apenas um exemplo para avançarmos na reflexão acerca do mundo pós-coronavírus e das novas frágeis condições de solidariedade social.

Londres, 23 de abril: enfermeiras durante o Clap for Our Carers.

Londres, 23 de abril: enfermeiras durante o Clap for Our Carers.

Foto: Justin Setterfield/Getty Images

As duas perguntas interdependentes que precisamos fazer neste momento são: 1) em que medida está havendo uma mudança de mentalidade coletiva nesses tempos de crise?, 2) se estiver, só ela seria suficiente para mudar o status quo dominado por uma política econômica neoliberal e austera?

Em grande parte, o mundo pós covid-19 não dependerá somente de nossa capacidade de manter isolamento social, mas da vontade política de promover proteção social para aqueles que estão endividados e com fome –oferecendo renda, comida e atendimento médico.

O que temos visto nas principais democracias liberais do mundo é a falaciosa discussão de um falso dilema entre vidas e economia. Somada à austeridade mais bruta que existe, prevalece o mundo dos políticos autoritários que ignoram a ciência não apenas pelo prejuízo econômico, mas pela mais pura vaidade que domina a personalidade de autocratas.

Já em relação à mudança de mentalidades, a resposta está em aberto. Não se pode negar as diversas formas de solidariedade comunitária que vimos surgir nos últimos tempos. Muitos de lembramos que não somos seres isolados – uma “ilha” –, mas interdependentes. Essa é uma parte fundamental da história a ser contada sobre a humanidade em tempos de crise.

Mas ainda da janela da minha casa, que é de onde eu consigo observar o mundo num pequeno raio de cem metros durante meu isolamento, tenho me questionando se esse sopro de humanidade é sustentável. Meus ilustrados vizinhos, por exemplo, aguentaram bem as três primeiras semanas, mas não resistiram ao tédio e ao imediatismo dos tempos.

Nos primeiros dias, a pracinha estava vazia, com pessoas sozinhas fazendo seus exercícios em revezamento. Para caminhar na rua, todos tinham o impulso para desviar e tomar a distância de dois metros. Nos últimos dias, a praça estava cheia de famílias, amigos e crianças lotando o espaço em clima de férias. Poucas pessoas tomavam distância nas ruas. Isso em um país à beira do colapso, que tem tido 5 mil casos por dia e já superou a marca de 20 mil mortos. Quando a curva da morte demonstrou uma pequena queda, as ruas ficaram cheias.

O relaxamento das normas sociais diz muito sobre a sociedade e seus valores coletivos. Tenho escutado e lido alguns europeus que, até poucos dias, enalteciam o distanciamento. Hoje, o discurso mudou. Eles falam da importância da escolha individual. No final de semana, os franceses lotaram a região de 18ème. Eu ouvi colegas dizerem que isso fazia parte do princípio inegociável de liberdade que reina nas democracias liberais no Ocidente.

Só que liberdade, na melhor tradição francesa, está longe de ser deslocada da fraternidade. Tão básico como  dois mais dois são quatro. É o princípio que a minha liberdade se encerra quando começa a liberdade do outro. Caso contrário, estamos falando de puro voluntarismo e egoísmo social. E é justamente por isso que a polícia teve que atuar na aglomeração em Paris: a coesão e a solidariedade social não se sustentaram por muito tempo enquanto valor introjetado sem que fosse necessário a intervenção de uma autoridade.

Em muitos lugares de ruas, praças e praias lotadas, o que temos visto é que solidariedade tem sido um conceito cosmético, superficial e imediatista, inclusive para muitas pessoas que batem palmas nas janelas ou postam foto no Instagram com máscara cor-de-rosa.

O fato é que não existirá um mundo melhor ou pior no futuro, mas ambos. Em plena pandemia, existe hoje uma divisão no mundo que é concomitantemente econômica, política e ética, apartando aqueles que entendem o valor do sacrifício individual em nome do coletivo e aqueles que dão festas em suas casas e gritam “foda-se a vida”; entre aqueles que fazem carreatas e os que jogam ovos nos carros.

A visão da minha janela – ainda bem – não é a visão do mundo, mas um pequeno fragmento. É muito cedo para jogar a toalha. Apesar do tom amargo de hoje, não penso que a humanidade é um projeto fracassado ou que não exista um mundo pós-coronavírus positivo. Não existem narrativas totalizantes sobre o mundo. Existem apenas disputas desse devir.

É flagrante o egoísmo de muitas pessoas, mas isso apenas serve para nos mostrar que a construção da ação pública, da solidariedade coletiva e do espírito democrático é uma tarefa da qual nunca podemos relaxar. Como todos os momentos de crise, que trazem sempre destruição e criação, nunca foi tão importante imaginar, reinventar e lutar para colocar em prática valores econômicos e humanos que superem a austeridade e o egoísmo. Aplausos são uma parte importante dessa história, mas se envolver em ações coletivas concretas é muito mais.

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