Em 2015, um dos grupos de pesquisa sobre câncer da OMS, a IARC, classificou o glifosato, um ingrediente ativo do herbicida Roundup, como um “provável carcinógeno”, desencadeando um debate global sobre o herbicida mais popular do mundo.
Nos últimos quatro anos, os congressistas republicanos criticaram e pressionaram para retirar os fundos da IARC, lançando sua defesa sobre o produto químico em uma missão em nome de pequenos fazendeiros norte-americanos. O deputado republicano Frank Lucas, de Oklahoma, escreveu que sua indignação com a pesquisa sobre o câncer é em nome dos “agricultores e fabricantes de alimentos que dependem de métodos agrícolas tradicionais para produzir a comida que abastece a América – e o mundo”.
Mas, de acordo com um conjunto recente de documentos, o ataque político à IARC foi roteirizado em parte pela Monsanto, o conglomerado químico e de sementes de St. Louis que produz o Roundup e cultivos resistentes a ele.
O Roundup tem sido a galinha dos ovos de ouro da empresa desde os anos 1970, rendendo bilhões de dólares em lucros anuais. Seu uso disparou nas últimas décadas desde que a Monsanto desenvolveu milho geneticamente modificado e outras culturas que são resistentes a ele – o Roundup é hoje o principal herbicida do mundo.
Um número cada vez maior de pessoas afirma que a Monsanto falhou em alertar os consumidores sobre os perigos do uso do Roundup e divulgou que o spray químico é inofensivo para os seres humanos, enquanto recomenda internamente que seus próprios funcionários usem luvas e equipamentos de proteção. Os críticos dizem que a fórmula Roundup usada nos EUA também contém um surfactante que torna o herbicida muito mais tóxico do que a variação do spray vendido no mercado europeu.
A Monsanto, que se fundiu com a empresa farmacêutica multinacional alemã Bayer AG no ano passado, está enfrentando 11 mil processos relacionados ao glifosato. No ano passado, Dewayne Johnson, um ex-zelador que agora está morrendo de câncer, foi o primeiro a vencer seu julgamento no tribunal de San Francisco contra a Monsanto, alegando que anos de uso do Roundup contribuíram para o linfoma não-Hodgkin que adquiriu. Foi decidido pelo júri que Johnson receberia 289 milhões de dólares, apesar de um juiz mais tarde ter reduzido o valor para 78 milhões. Outro queixoso, Edwin Hardeman, que também alegou ter passado décadas pulverizando o herbicida à base de glifosato com pouco ou nenhum equipamento de proteção e desenvolvido o mesmo tipo de câncer no sangue, venceu um caso semelhante em uma corte federal este ano.
Arquivos recém-divulgados pelo escritório de advocacia Baum Hedlund incluem e-mails, documentos e transcrições de depoimentos da empresa, mostrando que os advogados e lobistas da Monsanto orientaram os legisladores, coordenando esforços para questionar a credibilidade da IARC e reduzir o apoio dos EUA ao organismo internacional.
A empresa negou as alegações de que seus produtos causam câncer, e os advogados da Monsanto declararam que a designação do glifosato como seguro pela EPA deve livrar a empresa de qualquer responsabilidade legal. Em uma recente campanha de marketing, a Bayer divulgou sua cooperação amigável com reguladores como um sinal de que o público não deveria ter nada a temer com seus produtos.
Mas os documentos também sugerem que a empresa usou sua influência com legisladores para antagonizar os reguladores, pressionando e lançando mão de ameaças investigativas para moldar a ciência usada para pesquisar o glifosato e outros compostos químicos controversos, como parte de uma campanha maior para silenciar os críticos e desacreditar a IARC.
Em junho de 2015, Michael Dykes, então vice-presidente de assuntos governamentais da Monsanto, expôs a estratégia da empresa para “gerenciar a questão da IARC”, após a determinação do centro de pesquisa de câncer em março daquele ano.
A empresa, escreveu em e-mail, enviou sua equipe de lobistas para informar “funcionários-chave da EPA, USTR, USDA e do Departamento de Estado, bem como membros do Congresso” para criar dúvidas sobre o processo científico da IARC e sobre como a decisão poderia afetar a agricultura e o comércio internacional. Lobistas também se reuniram com um funcionário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos; eles viram o apoio da agência como chave “para garantir um esclarecimento da OMS”.
No final do ano, Dykes atualizou a equipe da Monsanto com planos de pressionar contra a IARC, incluindo a possível colocação de anúncios – na forma de cartas assinadas por terceiros – em jornais da capital do país, bem como preparação para usar um Comitê de Agricultura do Senado como um local para que a EPA reafirme o seu apoio ao glifosato. “Vamos garantir que os membros do Comitê perguntem à EPA sobre a questão da segurança do glifosato”, escreveu Dykes.
No ano seguinte, o FTI Government Affairs, uma das várias empresas de consultoria que norteiam a resposta política da Monsanto à decisão da IARC, ajudou os legisladores do Partido Republicano a investigar o apoio dos EUA à IARC.
Todd Rands, ex-advogado da Monsanto que trabalhava com o FTI, enviou por e-mail um rascunho de uma carta ostensivamente escrita pelo deputado Rob Aderholt, republicano do Comitê de Apropriações da Câmara, dirigido ao Dr. Francis Collins, diretor do National Institutes for Health. O NIH é o órgão do governo responsável pela maioria das pesquisas federais em saúde pública e é o maior financiador da IARC. A carta, na verdade, foi escrita por consultores do FTI, juntamente com as edições de Rands, de acordo com seu depoimento.
A carta escrita pelo FTI declarou que o glifosato “não causa câncer”, acusou a IARC de “ciência de mentira” e ameaçou reavaliar o orçamento do NIH para garantir que a agência esteja “comprometida em financiar apenas organizações que produzem informações e conclusões baseadas em ciência sólida, processos robustos e metodologia confiável.”
Durante seu depoimento, Rands disse acreditar que seria apropriado para a Monsanto redigir uma carta em nome de um parlamentar para o NIH, definindo esse tipo de ghostwriting como uma “prática comum em Washington”.
Não está claro o que o escritório de Aderholt fez com a carta de autoria do FTI. O escritório de Aderholt não respondeu a um pedido de comentário do Intercept. Em 2 de junho de 2016, Aderholt enviou uma carta ao NIH para solicitar informações sobre a designação de glifosato pela IARC como provável agente cancerígeno e “os padrões que o NIH coloca em pesquisa financiada pelos contribuintes dos EUA”, um texto que refletia muitas das demandas presentes na carta do FTI, ainda que usasse uma linguagem diferente.
Mais cartas do Partido Republicano e demandas por investigação sobre o financiamento do NIH para o IARC seguiram as anteriores. Os deputados republicanos Jason Chaffetz, de Utah, então presidente do Comitê de Supervisão da Câmara, Trey Gowdy, da Carolina do Sul, o sucessor de Chaffetz na presidência do comitê, e Lamar Smith, do Texas, então presidente do Comitê de Ciências da Câmara, solicitaram investigações sobre o financiamento da IARC e a designação de glifosato como carcinógeno.
Os lobistas da Monsanto se reuniram com os comitês à medida que se aproximavam do financiamento da IARC. Drew Feeley, advogado da equipe do Comitê de Supervisão da Câmara, enviou um e-mail a um consultor do FTI, explicando que seu escritório estava trabalhando para anexar uma linha a um projeto de lei do governo projetado para “ser aplicado na IARC” e reduzir seu financiamento por conta da questão do glifosato. “Obrigado novamente pela coordenação”, escreveu Feeley ao consultor da Monsanto. Feeley, notavelmente, agora está atuando como advogado no Conselho de Qualidade Ambiental, o escritório da Casa Branca que supervisiona a política ambiental.
“Esperamos que a investigação da OGR da Câmara sobre a IARC se expanda à medida que avançam para a nova administração”, escreveu Rands, em texto para atualizar os colegas da Monsanto.
No ano passado, sob o comando de Smith, o Comitê de Ciências da Câmara dedicou toda uma audiência para questionar a IARC, com foco em sua conduta em relação ao glifosato. Em seguida, Smith enviou mais cartas para pesquisadores de câncer na Noruega, exigindo que eles “corrigissem as falhas na IARC”. O Comitê de Apropriações da Câmara seguiu suas ações cortando 2 milhões de dólares em financiamento para a IARC, um movimento simbólico para distanciar os EUA do organismo internacional, que conta com um orçamento de cerca de 40 milhões de dólares provenientes de uma série de países membros.
A aproximação com o congresso foi apenas parte de um esforço multifacetado para controlar a reação desencadeada pela designação da IARC.
Nos últimos anos, uma grande quantidade de novas informações surgiram para evidenciar os esforços da Monsanto para ocultar os potenciais riscos à saúde relacionados ao glifosato. No início deste mês, novos documentos revelaram que a Monsanto operava um “centro de fusão” para desacreditar os críticos da empresa, incluindo o ex-jornalista da Reuters Carey Gillam, que escreveu extensamente sobre o glifosato. A operação até monitorou e considerou tomar medidas legais contra o cantor Neil Young, crítico da Monsanto.
O jornal francês Le Monde publicou uma matéria premiada sobre a controvérsia, referindo-se à campanha da Monsanto para desacreditar a IARC como um esforço para “intimidar” o centro de pesquisa do câncer.
Um esconderijo separado de arquivos contenciosos, divulgado em maio, revelou que a Monsanto também contratou a Hakluyt, uma empresa de inteligência corporativa, para acompanhar atentamente as elites políticas em Washington. A empresa consultou altos funcionários da gestão de Trump e da EPA e confirmou que a administração apoiaria a Monsanto em questões de glifosato. “Nós apoiamos a Monsanto na questão da regulamentação de pesticidas”, disse um assessor de política interna a Hakluyt na Casa Branca.
O ano passado expôs outras táticas furtivas. A empresa foi criticada por escrever estudos científicos de forma apócrifa sobre a segurança do glifosato, que foram apresentados como pesquisas independentes. No julgamento civil de San Francisco sobre o glifosato, um consultor do FTI que trabalhava para a Monsanto foi pego fingindo ser um jornalista que trabalhava para a BBC e outra empresa britânica.
E, em 2017, uma das revelações mais chocantes mostrou que um funcionário sênior da EPA, Jess Rowland, havia alertado a Monsanto em segredo para o fato de que agências federais haviam procurado reavaliar a segurança do glifosato, gabando-se para a companhia de que ele poderia “matar” as investigações federais sobre o glifosato. Pouco antes de uma votação crucial da União Europeia sobre os produtos à base de glifosato, a EPA repentinamente divulgou um relatório declarando a segurança do produto. O documento foi posteriormente retirado porque ainda não havia sido concluído. Um funcionário da Monsanto repassou a um colega o que Rowland havia lhe dito: “Se eu conseguir matar isso, eu deveria receber uma medalha”, no que diz respeito à revisão do glifosato feita pela Agência de Substâncias Tóxicas e Registro de Doenças, um departamento de Saúde e Serviços Humanos.
Depois de deixar a EPA, Rowland foi trabalhar no setor privado como consultor de empresas químicas.
Há também uma alta rotatividade entre os legisladores que apoiam a Monsanto e os profissionais que trabalham em nome da empresa. Pouco depois de se aposentar do Congresso este ano, após sua investigação da IARC, Lamar Smith conseguiu um emprego na Akin Gump Strauss Hauer & Feld LLP, uma empresa de lobby que representa os interesses da Bayer-Monsanto em Washington.
Atualização, 23 de agosto, 14h30
Após a publicação, a Bayer enviou a seguinte declaração: “Nenhum dos documentos selecionados pelos advogados dos queixosos e seus substitutos contradizem as descobertas do extenso corpo científico e as conclusões dos principais reguladores de saúde de que os herbicidas à base de glifosato são seguros quando usados conforme as instruções e que o glifosato não é carcinogênico. Em vez disso, eles mostram que as atividades da Monsanto tinham a intenção de garantir que houvesse um diálogo justo, preciso e baseado na ciência sobre a empresa e seus produtos em resposta a desinformação significativa. Levamos a segurança de nossos produtos e nossa reputação muito a sério e trabalhamos para garantir que todos – de reguladores a clientes e outras partes interessadas – tenham informações precisas e equilibradas para tomar decisões sobre nossos produtos.”
Tradução: Maíra Santos
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