O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu preside o encontro semanal do gabinete em seu escritório, em Jerusalém, em 11 de dezembro de 2016.

Por que se denuncia o autoritarismo de Trump e Putin, mas não o de Netanyahu em Israel?

Defensores de direitos humanos de Israel enfrentam repressão contra seus esforços para expor os crimes de guerra nos Territórios Ocupados.

O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu preside o encontro semanal do gabinete em seu escritório, em Jerusalém, em 11 de dezembro de 2016.

Os liberais ocidentais têm se manifestado bastante, atualmente, sobre a ascensão de governos autoritários e iliberais em todo o mundo: de Putin, na Rússia, a Orbán, na Hungria; de Trump, nos EUA, a Erdogan, na Turquia; de Modi, na Índia, a Duterte, nas Filipinas. Não se vê tanto clamor em relação a Netanyahu, em Israel — a despeito do fato de que o país, como admitiu o ex-ministro israelense de Relações Exteriores Shlomo Ben-Ami, esteja “sucumbindo aos seus mais profundos impulsos etnocentristas” e esteja “no rumo de se juntar ao crescente clube das democracias iliberais, graças ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu”.

Alguns dirão que “no rumo” é eufemismo. Segundo Hagai El-Ad, diretor-executivo da organização B’Tselem, o Centro de Informações de Israel sobre Direitos Humanos nos Territórios Ocupados, o Estado judeu poderia ser considerado sócio-fundador desse clube por sua “ampla dianteira” em relação aos demais membros. Por exemplo, a prática de “descrever a oposição, e especificamente as organizações de direitos humanos, como traidores, e então pleitear que sejam criminalmente investigados (…) pode parecer familiar a ouvintes de vários países (…) onde governos autoritários estão em ascensão”, me diz ele, no último episódio do podcast Deconstructed, “mas, olha, Israel já fazia isso muito antes”.

Analisemos o conjunto de leis “antidemocráticas” que foram aprovadas na última década pelo Knesset, o parlamento de Israel, e que tiveram um efeito assustador sobre a liberdade de expressão. Em 2011, foi promulgada a “Lei do Boicote“, que permite que qualquer indivíduo ou organização israelense que incite um boicote contra Israel seja processado por perdas e danos. Houve também a “Lei Nakba“, que autorizou o Ministério das Finanças de Israel a interromper o financiamento a instituições que rejeitem a condição de Estado “judeu” de Israel, ou que considerem que o Dia da Independência do país seja um “dia de luto”. Em 2015, veio a “Lei das ONG’s“, que atinge organizações de direitos humanos em Israel que recebam financiamento estrangeiro, e que foi descrita por Mossi Raz, um político do partido de esquerda Meretz, como uma “lei semi-fascista que fere a democracia e silencia a divergência de uma forma que lembra a Rússia de Putin”. (Das 27 organizações ameaçadas por essa lei, 25 são de esquerda ou grupos de direitos humanos.)

Há ainda a opinião pública israelense, que apresentou uma extraordinária guinada nas últimas décadas rumo à direita autoritária e racista. Segundo uma pesquisa do Pew Research Center, quase metade (48%) dos judeus israelenses atualmente apoiam expulsar os árabes de Israel, e a ampla maioria (79%) considera ter direito a “tratamento preferencial” em relação às minorias não-judaicas em Israel.

Nessa edição do Deconstructed, também conversei com Avner Gvaryahu, ex-paraquedista militar das Forças de Defesa de Israel (FDI), que hoje atua como diretor-executivo da ONG israelense Breaking the Silence [Rompendo o Silêncio], “especialmente detestada pelos israelenses de direita” porque coleciona depoimentos anônimos de veteranos militares de Israel a respeito de abusos que presenciaram ou cometeram durante seu período nos Territórios Ocupados. Segundo Gvaryahu, a direita israelense criou “um ambiente tóxico que um dia deve se voltar contra eles, mas que nesse momento está basicamente destruindo o que resta dos valores liberais em nosso país”.

Por fazer afirmações tão provocadoras e expor possíveis crimes de guerra praticados pelas FDI nos Territórios Ocupados, Gvaryahu, El-Ad e outros ativistas de direitos humanos em Israel não apenas têm sido alvo das leis antidemocráticas, mas também têm sofrido agressões verbais, assédio e ameaças de morte. Até membros de alto escalão do governo israelense entram nessa conta. Parece ruim que Donald Trump tenha chamado a CNN de “fake news”? Nehanyahu já atacou a “Breaking the Silence” por difundir “mentiras e difamar nossos soldados pelo mundo”. O ministro da Defesa Avigdor Lieberman acusou membros do B’Tselem e da Breaking the Silence de serem “completos traidores” financiados “pelas mesmas fundações que financiam o Hamas”.

Perguntei a Gvaryahu como ele reage a ataques pessoais tão maliciosos pelos funcionários mais graduados do país. “Nós meio que brincamos com isso (…) entre os membros da Breaking the Silence. Em que ponto nos tornamos traidores? Foi (…) da primeira vez que lemos um blog de esquerda quando ainda éramos soldados? Foi quando lemos (…) algum livro enquanto guardávamos [prisioneiros palestinos] e brotou em nossas cabeças uma ideia, e começamos a questionar o que estávamos fazendo — ali já éramos traidores também? Quando compartilhamos nossas experiências ao voltar para casa, conversando com pessoas da família — éramos traidores, então? Ou só nos tornamos traidores quando (…) [começamos a] romper o silêncio publicamente?”

Nas últimas semanas, atiradores de elite das FDI sofreram fortes críticas por alvejar e matar dezenas de manifestantes palestinos desarmados, inclusive crianças e jornalistas, na fronteira com Gaza. Para Gvaryahu, “a verdade é que provavelmente há soldados na fronteira agora que um dia serão parte da Breaking the Silence. Será que nesse momento eles já são traidores?”

El-Ad diz que não está surpreso com o discurso hostil. “Por 50 anos, temos definido toda oposição palestina à ocupação como incitação. Por que não poderíamos começar a definir também a oposição israelense à ocupação como incitação, e ir fechando aos poucos o cerco da Linha Verde — mas na direção errada?”

Diante do constante ataque das autoridades israelenses de direita contra El-Ad, Gvaryahu e suas organizações e veículos de notícias, não é vergonhoso que as lideranças liberais do Ocidente não estejam se manifestando ruidosamente em apoio a eles? Ou que essas lideranças estejam tão engajadas em denunciar comportamentos iliberais ou autoritários de Trump ou de Vladimir Putin, mas tão dispostas a fazer vista grossa para Netanyahu?


Assista ao documentário que Israel não quer que você veja


O atual governo de Israel — o governo mais à direita e mais avesso à paz de que se tem lembrança — está determinado a demonizar e deslegitimar seus críticos internos, especialmente os ativistas de direitos humanos e as organizações da sociedade civil. E que se dane a liberdade de expressão!

Por quê? Porque as críticas de judeus ao Estado judeu sempre foram mais difíceis de ignorar ou repelir. Fossem Albert Einstein e Hannah Arendt nos anos 1940… ou Natalie Portman no começo de abril. A atriz israelense-americana causou furor em Israel ao se recusar a comparecer a uma cerimônia de premiação em Tel Aviv, dizendo que “não queria dar a impressão de que aprova Benjamin Netanyahu” e se insurgindo contra “o tratamento inadequado daqueles que sofrem pelas atuais atrocidades” em Israel. E qual foi a resposta do governo israelense? O ministro do Gabinete Yuval Steinitz afirmou que o boicote promovido por Portman “beirava o antissemitismo.”

Qualquer pessoa que se manifeste contra o comportamento repressor do governo de Israel, de ambos os lados da Linha Verde, deve ser silenciado. Essa é a mentalidade autoritária e ultranacionalista que agora domina não só o gabinete de Netanyahu, mas também o Knesset. No começo do ano, legisladores israelenses deram aprovação inicial a uma emenda que permitia ao Ministério da Educação proibir de entrarem em escolas as organizações que criticam as FDI. Membros do Knesset destacaram especificamente a Breaking the Silence enquanto discutiam a emenda.

Gvaryahu acredita que seria difícil defender judicialmente uma medida tão ampla e draconiana. “O mais interessante, porém”, ele me conta, “é que, embora tenha havido essa discussão e haja resistência nas escolas que nos convidam, ainda somos convidados. Tivemos uma experiência incrível uns meses atrás, quando alunos de ensino médio nos convidaram, mas os diretores da escola tiveram medo da reação e decidiram cancelar”.

Ainda assim, continua o líder da Breaking the Silence, “os próprios alunos disseram: ‘quer saber? Vamos encontrá-los no nosso próprio horário, em nossas próprias casas’ – adolescentes de 17, 18 anos! Quer dizer, como você motiva jovens de 17, 18 anos, nos tempos atuais, a fazer qualquer coisa? E eles, em seu próprio horário, fora da escola, disseram: ‘vamos convidar vocês'”.

Por isso, Gvaryahu afirma estar otimista e não ter planos de desistir de sua campanha contra a ocupação ilegal de Israel e contra as violações de direitos humanos — independentemente da pressão venha de cima e do apoio escasso dos liberais do Ocidente. O ex-soldado acredita que ele e os demais ativistas podem continuar a “romper o silêncio” diante de cada vez mais israelenses, especialmente os mais jovens. “Eles estão fechando uma porta”, diz ele, “vamos entrar pela janela”.

Foto em destaque: O primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu preside o encontro semanal do gabinete em seu escritório, em Jerusalém, em 11 de dezembro de 2016.

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Tradução: Deborah Leão

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